quinta-feira, 19 de novembro de 2020

O FUTEBOL POBRE EM ESTADO PURO

 

Em campos por toda a África, sacos de plástico, roupas velhas e pneus rasgados transformam-se em mágicas bolas de futebol. 


Em Chicome (Moçambique), a bola de Orlando é feita com sacos de plástico atados com casca de árvore. 

Os campos de jogo são áridos, irregulares, cheios de ervas daninhas, arenosos. Qualquer espaço plano é adequado. As balizas podem ser construídas com qualquer material. Alguns meninos jogam descalços, outros com botas, sandálias e ténis quase gastos. 
E mesmo assim as crianças pontapeiam e perseguem bolas artesanais e abauladas com destreza e entrega, competindo por brio, por alegria e pelo simples prazer de jogar. 
Alguma vez o “belo jogo” foi mais encantador? 

Um jogo no qual a paixão faz esquecer a pobreza e uma bola pode trazer a felicidade a uma aldeia inteira.

Jessica Hilltout acha que não. Em 2010, quando o Campeonato Mundial se disputou pela primeira vez em África, a fotógrafa residente na Bélgica decidiu partir em busca do que era o futebol longe dos estádios. Depois de sete meses, dez países visitados e mais de vinte mil quilómetros percorridos, descobriu um jogo no qual a paixão faz esquecer a pobreza e uma bola pode “trazer a felicidade a uma aldeia inteira”, diz.

Atados com corda, os sacos de plástico transformam-se numa bola em Bibiani, no Gana. 

Nas cerca de três dezenas de localidades que visitou, da África do Sul à Costa do Marfim, tudo serve para fazer uma bola: trapos ou peúgas, pneus ou casca de árvore, sacos ou preservativos insuflados. Podem durar dias ou meses num campo de gravilha ou de terra batida. Onde quer que fosse, Jessica Hilltout trocava bolas compradas em lojas por estas “pequenas jóias de engenho”, a maioria das quais feitas por crianças. 
O futebol tem um longo historial em África, diz Peter Alegi, escritor e professor de história. Em 1862, um ano antes de as regras internacionais do jogo serem definidas em Londres, já se disputavam partidas na Cidade do Cabo e em Port Elizabeth. 


 

Antes de começar o dia de escola em Gondola (Moçambique), Isaac, de 13 anos, demonstra a sua técnica de fabrico de bolas. Servindo-se de fio, trapos e um preservativo insuflado, faz uma bola de futebol em trinta minutos. 

O jogo propagou-se pelo continente através do colonialismo europeu, difundido por soldados e comerciantes, linhas férreas e escolas de missionários. Os habitantes locais adoptaram-no bem cedo, dando-lhe o cunho próprio de regras desportivas regionais autónomas. A partir de então, o futebol floresceu. “Se alguma coisa se pode salvar do encontro duro e desigual entre as culturas ocidentais e africanas, nessa lista deve incluir-se a chegada do futebol”, escreve David Goldblatt, historiador do futebol.
No último século, os jogadores africanos mudaram a face do jogo.

Em Kumasi, no Gana, as bolas de fabrico industrial abundam. Michael Sarkodie segura uma no campo do clube Anokye Stars, fundado por Sani Pollux em 1956.

À medida que os países declaravam independência, foram aderindo à Federação Internacional de Futebol (FIFA) e competindo no Campeonato do Mundo. Actualmente, milhares de “academias” de futebol africanas recrutam rapazes nas cidades, vilas e lugares distantes, onde as condições de jogo geram dureza, arrojo, controlo de bola e poder de improvisação. Um pequeno punhado consegue jogar na Europa ou integrar as selecções nacionais, mas a enorme maioria não atinge o escalão profissional.

Um troféu de plástico dourado é orgulhosamente exibido numa casa em Lomé, no Togo.

Esse, porém, não é o objectivo do “jogo em bruto” praticado nas zonas rurais, diz Abubakari Abdul-Ganiyu, técnico de clubes de jovens em Tamale, no Gana. “O futebol é a paixão colectiva neste país”, diz. “No decorrer de uma partida, pomos de lado as nossas zangas.” E acrescenta: “Fazemos o melhor para moldar os jovens e torná-los responsáveis na sociedade. Para nós, o futebol é um instrumento de esperança.” 
Jessica Hilltout concorda: “O futebol é o desporto mais democrático do mundo”, diz. “É acessível a todos. As pessoas que encontrei conseguem fazer tanto com tão poucos recursos. É fácil olhar para uma bola esfarrapada e sentirmo-nos tristes. O meu objectivo foi fazer-vos olhar para a bola e transmitir entusiasmo.” 

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nationalgeographic.sapo.pt

Africa e o futebol: um relato de paixão, pobreza e criatividade

Jessica Hilltout percorreu dez países do continente africano para documentar a paixão pelo o futebol, ainda que por vezes seja impossível o acesso a coisas tão elementares (para as sociedades ocidentais) como uma bola ou um par de ténis.

“Cada bola era para mim uma pequena joia”, refere a fotógrafa belga de 33 anos, acrescentando que muitas vezes são as crianças as criadoras destas peças de artesanato.

No livro de notas das duas viagens, a autora refere que não há nenhuma povoação em África que exista sem futebol. “É a única actividade que não custa nada”, explica: “As bolas são feitas à mão, há sempre por perto um terreno relativamente plano; a madeira fornece os postes para a baliza”.

“Todas as pessoas que estão na sombra do campeonato mundial [de futebol] serão as estrelas deste livro”, escreve Hillout, sublinhando que o seu álbum “não é só sobre futebol ou sobre África” na medida em que procura “captar a beleza e a força do espírito humano”.

 

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Fotografia: Jessica Hillout

Dificuldades e esperança para crescer no meio do esporte fazem parte do cotidiano dos jovens do Setor Pedro Ludovico, em Goiânia. Com uma situação precária, pouco investimento e problemas familiares no dia a dia, os garotos se refugiam no futebol para continuar sonhando alto e lutar contra a pior das mazelas: a fome (assista no vídeo).


VÍDEOS






 

Alguns ficam até 20 dias sem comer carne - conta emocionado o técnico Edvan Dalate.

Idealizador da “Escolinha do Areião”, que representou o Setor Pedro Ludovico na Taça das Favelas, Edvan conta os problemas que enfrentam e que alguns garotos aparecem apenas para ter o que comer após o fim do treino. Na competição, o time acabou eliminado nas quartas de final.

- A gente sente que eles vêm por causa do lanche. Quando o treino está próximo de terminar, as meninas e os meninos começam a aparecer, e a gente tem que ter o lanche para todos eles, pois a gente sabe que está difícil pra eles e temos que fazer da melhor maneira possível.

A estrutura do local onde os garotos treinam também é limitada. O vestiário do local não funciona mais, o campo contém muito mato, terra e lama e muito dos garotos não tem chuteiras ou luva de goleiros e muitas vezes, precisam pegar emprestadas.

Edvan comentou sobre as dificuldades que passa para continuar fazendo com que o projeto da escolinha continue vivo e que eles sigam jogando.

Técnico Edvan Dalate ao lado do diretor Dedé — Foto: Wagner Oliveira/GloboEsporte.com

Técnico Edvan Dalate ao lado do diretor Dedé — Foto: Wagner Oliveira/GloboEsporte.com

- Geralmente fazemos uma vaquinha com os professores. Cada um dá um pouquinho. A maioria dos meninos não tem chuteira para treinar, então juntamos um dinheiro, vamos no brechó e compramos o que é mais barato. Muitas das vezes eu arrumo com algum conhecido também e distribuímos para eles. Mandamos ofício para a prefeitura para fazer a limpeza do campo também e temos que contar com eles, pois pra gente fazer também fica difícil.

Apesar das dificuldades, alguns já conseguiram sonhar mais alto com o projeto. O treinador contou que conseguiu levar alguns atletas para atuar em outros clubes e que pretende continuar dando uma melhor condição para os jovens.

- Quando o menino está bem preparado e já tem condição, eu encaminho e levo para os clubes. Tem um que levamos para o Campinas e de lá, foi para o Vila Nova. Tem a Daiane, que tínhamos no time feminino e nós levamos para a Universo e agora, numa conversão com o Goiás, ela está fazendo parte do time do Goiás, e tem dois meninos aqui estão nos Atletas de Jesus.

Vestiário do local não é mais usado pelos garotos — Foto: Wagner Oliveira/GloboEsporte.com

Vestiário do local não é mais usado pelos garotos — Foto: Wagner Oliveira/GloboEsporte.com

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