sábado, 10 de outubro de 2020

"Em Portugal, quem é muito rico não paga impostos"


Eduardo Paz Ferreira afasta a ideia de que vamos assistir ‘a um assalto’ aos fundos comunitários e diz que, ‘se existirem problemas’ nessa matéria, a máquina judiciária tem de atuar. Critica também a atuação do Tribunal de Contas, por avançar com parecer sobre propostas que ainda não foram aprovadas no Parlamento.

Diz que as finanças públicas não podem ser geridas à luz de um mero taticismo político ou como mero instrumento de ação política de um partido ou de um grupo social. Isso é fácil de gerir?

Por um lado, há que mudar a mente: ao que se tem assistido é a uma tentativa para reduzir as finanças públicas a números. Tudo se reduz ao valor do défice, ao valor do PIB e esquecem-se realidades muito importantes. E, depois, temos a questão do taticismo político. De alguma forma, este Orçamento que está a ser discutido agora, é um exemplo disso mesmo. Não se pode desviar as finanças da política, os políticos têm o direito e o dever de intervir definindo quais as prioridades que acham mais aceitáveis para o país, mas não tornar isso numa pura manobra – temos casos célebres, como a votação do queijo Limiano e provavelmente houve outros semelhantes, mas esse deputado nunca se livrou de ter ‘vendido’ um voto ao PS pelo queijo Limiano.

Muitas vezes, as finanças públicas são usadas como uma arma de arremesso entre os partidos políticos…

As finanças públicas têm de ser a expressão dos desejos dos cidadãos, aquilo que os cidadãos querem. Se querem uma sociedade mais virada para a segurança ou mais para a redistribuição da riqueza. Têm de ser eles a definir os grandes valores que estão em causa e isso não passa necessariamente por esse tipo de discussão partidária muito acirrada, embora ache que os partidos têm todo o direito e o dever de defenderem os seus pontos de vista. Agora, quando as coisas se aproximam, se dá jeito provocar uma crise ou não, já não estamos no domínio das finanças, mas no domínio da política pura.

É o caso deste Orçamento?

Voltamos a 2011, com o Presidente da República a tentar patrocinar uma solução de estabilidade, mas não tem o poder para isso. Tem um poder de influência, ninguém se quer zangar ou ser descomposto por ele, mas não tem mais poderes do que esse. 

Mas, ao apelar para não haver uma crise política, poderá dar algum ‘empurrão’, pelo menos, aos partidos de esquerda para deixarem passar o  documento?

Sim, embora diria que esses partidos são dos menos sensíveis à voz do Presidente da República. Nunca o apoiaram, nunca tiveram relações muito próximas com ele.

Até têm candidatos próprios às eleições presidenciais...

Têm candidatos próprios, não põem a hipótese longínqua de apoiar o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Esses não são talvez muito sensíveis. Podem ser no aspeto do desgaste, dada a popularidade enorme que o Presidente tem junto da população. Noutro dia, achei curioso no programa do Ricardo Araújo Pereira a crítica que fez ao Presidente da República por estar a interferir no Orçamento e até o comparava ao Dom Corleone d’ O Padrinho ao dizer que têm aqui uma coisa que não podem dizer que não.

Os partidos de esquerda dizem todos os anos que não passam um cheque em branco mas acabam por aprovar o documento. Acha que este ano vamos assistir ao mesmo?

Não sei. A aposta do primeiro-ministro de governar em minoria pareceu-me sempre uma proposta arriscada, principalmente dada a grande tensão que se vive na sociedade portuguesa. Se olhar para os jornais, vê, em alguns, que há uma hostilidade muito grande ao Governo e isso cria-lhe um ambiente mais difícil. Qualquer passo que dê é imediatamente escrutinado e interpretado no sentido de o desvalorizar ou de o atacar. Para ele, teria sido muito mais seguro ter uma base sólida de apoio. Só que isto é muito complicado. Penso que conseguiria fazer com alguma facilidade o acordo com o Bloco de Esquerda, se não fosse a questão do Novo Banco.

É o ‘calcanhar de Aquiles’...

É verdade. Aparentemente, há uma proposta do Governo mais ou menos conciliatória que é não ficar previsto no Orçamento qualquer verba para o Novo Banco, o que para mim já seria bastante tranquilizante, mas o Bloco, ao que ouço dizer, quer que fique expressamente que ninguém apoiará o Novo Banco. Uma posição ideológica, muito justa, não sei se é muito oportuna e se as consequências não poderiam ser muito complicadas.

A injeção dessas verbas está prevista no acordo de venda...

Essa foi a asneira inicial. Claro que se pode sempre pensar que não se estava à espera que a administração do Novo Banco fizesse o que fez, nomeadamente toda aquela série de vendas com descontos brutais e, ainda por cima, a pessoas com interesses no próprio banco. Num certo sentido, seria possível alegar má-fé na gestão. Uma má administração justificaria que não se cumprisse o acordo na totalidade. Infelizmente, os mercados financeiros mandam no mundo e são implacáveis. É muito difícil fazer qualquer movimento que não crie uma onda de choque muito grande.

Mas já foi conhecida a auditoria...

As auditorias são um problema muito complexo. É muito importante que haja auditorias, algumas têm muita qualidade, mas as auditoras têm muitos interesses, têm muitos clientes e têm muito cuidado em não perderem esses clientes e esses interesses. Portanto, tendem sempre para soluções apaziguadoras. É difícil encontrar, a não ser em casos muito evidentes, uma auditoria muito crítica a uma administração.

Se fosse provado que tivesse existido má gestão, o Novo Banco seria obrigado a devolver os apoios?

Nesse caso, o Estado devia processar o Novo Banco. O problema é que a justiça económica é uma área muito complicada. Não é simples para os magistrados portugueses que, na sua generalidade, não têm preparação económica nem financeira, nem têm assessores que os possam ajudar nisso. E vemos a grande lentidão na decisão de muitos processos na área financeira, que se deve muito à dificuldade de lidarem com este tipo de processos.

O PCP também reivindica medidas e tem apontado críticas à elevada carga fiscal e isso viu-se no estudo agora realizado pela CIP...

O problema essencial é que o sistema fiscal português, como muitos outros sistemas fiscais,  não está preparado para lidar com a perda de receita que resulta da fraude e da evasão fiscal. Em Portugal, quem é muito rico não paga imposto, coloca dinheiro no estrangeiro, arranja offshores, o que é uma coisa extraordinária. Como é que dentro da própria UE há offshores. Por exemplo, como é possível que o Luxemburgo ou a Holanda ou outros países estejam em condições de aceitar dinheiro vindo de outros Estados e tributá-lo a taxas mais baixas? Além das taxas de juro serem muito baixas, depois esses Governos ainda fazem acordos bilaterais com empresas que consideram interessantes que estejam lá sediadas ou que vão lá investir. Não quero ser extremamente pessimista, já que tem havido algum esforço da União Europeia para ir combatendo a fraude e a evasão fiscal, mas é um esforço muito lento e tem a particularidade de todas as decisões que sejam tomadas sobre matéria fiscal serem tomadas por unanimidade e ninguém convencerá esses países que beneficiam destes sistemas a votar nesse sentido.

Portugal não fica alheio a estes problemas de evasão fiscal...

Nenhum país fica alheio, infelizmente. Obviamente, é imoral que quem tem muito dinheiro não pague. Mas, se isto é inequivocamente verdade, a questão que se coloca é  o que se pode realmente fazer para acabar com isto e que vantagens resultariam para a população? Ouço sistematicamente os empresários, os presidentes das associações empresariais a dizerem que os impostos são um grande travão ao desenvolvimento da economia portuguesa. Mas interrogo-me se esse dinheiro que está colocado nas offshores e que representa, segundo algumas estimativas mais moderadas, 12% do PIB mundial, se fosse reintegrado na economia normal, permitiria descer os impostos, e os empresários pagariam menos impostos e o Estado teria mais dinheiro.



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