domingo, 27 de setembro de 2020

O perigo de subestimar o Chega


Tenho andado a evitar escrever este artigo, por não querer contribuir para o tempo de antena do partido em causa, até porque é precisamente da máxima “falem bem ou mal de mim, mas falem” que coisas como esta crescem. No entanto, das polémicas na convenção nacional à manifestação que misturou corrupção com racismo, são tantas as barbaridades a que tenho assistido nos últimos dias que não podia ficar calada e, assim, com grave prejuízo para o meu estômago e intelecto, vou falar hoje do Chega.

Depois do que aconteceu nos EUA e no Brasil, em que a maioria das pessoas achava que os actuais presidentes eram candidatos anedóticos que jamais seriam eleitos, aprendi a não subestimar a capacidade de disseminação de ideias populistas, mentiras e chavões reaccionários. Não subestimar, sobretudo a estupidez humana. Tornou-se, por isso, importante para mim expôr o perigo de haver quem siga e aplauda movimentos e partidos que vão pelo mesmo caminho.

Como democrata que sou, defendo acima de tudo o pluralismo e a liberdade de expressão, pelo que não pretendo com este artigo incitar a censura, mesmo das ideias chocantes que encontrei durante a minha pesquisa. Sou também apartidária, pelo que este texto não tem como objectivo achincalhar o Chega por razões políticas. Apenas quero expor as suas contradições, o nível de argumentação rasteiro e as propostas intelectualmente ofensivas para quem pensa pela própria cabeça, procura fontes alternativas de informação e é imune às manchetes de sites duvidosos e ao algoritmo que os põe a circular nos feeds dos menos informados. E posso começar precisamente por aí.

A grande ameaça para as democracias reside hoje na inteligência artificial, que como diz o nome, não é humana. Através da inteligência artificial criam-se algoritmos que dão às pessoas o que os anunciantes pensam que elas querem e o que os governos, lobbies e fanáticos querem que elas vejam. Ou seja, o mesmo acontecimento vai aparecer contado de forma diferente nos feeds de pessoas com ideologias diferentes, validando os seus preconceitos e crenças. Uma visão unilateral do mundo, sem direito a contraditório, que legitima ideias que, no mundo real, não seríamos capazes de verbalizar. É por isso que a mesma pessoa que diz online que os ciganos são uma praga, é capaz de ir à feira comprar-lhes roupa e dar dois dedos de conversa. Este fenómeno, mais perigoso para a paz mundial do que uma bomba nuclear, está inequivocamente demonstrado no documentário “The Social Dilema” da Netflix, o qual recomendo vivamente.

Portanto, quem segue páginas como a do Chega ou do seu líder, quem partilha artigos sobre a inexistência de racismo, por exemplo, graças ao algoritmo, vai começar a ver no seu feed outros artigos que legitimam essas ideias, numa lógica de quanto mais veneno cospem, mais são envenados. O mesmo acontece com os apoiantes do outro extremo ideológico, claro. Então, porque é que este artigo não malha no Bloco? Porque no site do Bloco encontrei muitas ideias que considero estapafúrdias e irrealistas, mas todas elas fundamentadas de forma, pelo menos, articulada.

Bom, mas comecemos pela manifestação organizada para a véspera da convenção, cujo mote era «Contra a corrupção. Racismo é distracção». Eu entendo a parte do contra a corrupção. Acho que maioria dos portugueses está cansada de escândalos envolvendo políticos, juízes e grandes grupos empresariais (lá está, lição número um do populismo: usar chavão com que toda a gente se identifica). Já chamar distracção ao racismo sistémico que se vive neste país é só baixo. Mais, é provocatório e visa tão só criar clivagens, chamar os Media, aparecer.

A propósito da convenção, Évora não foi escolhida por acaso. O partido quer ir buscar votos a um território historicamente comunista. Certo. É assim que se faz política. Porém, nas palavras do seu líder num “directo” no facebook, antevemos algum fanatismo. André Ventura disse nesse vídeo que o Chega é como uma religião. «Quando eu digo que é como uma religião é porque temos de ter a capacidade de converter e andar por todas as terras de Portugal e levar a nossa mensagem.» E é assim que eles começam. «Um dia todo o Portugal será nosso» é outra das pérolas. Em todos os posts nas redes sociais, temos uma hashtag esclarecedora: um partido, um líder, um destino. A definição consensual de totalitarismo, portanto.

Laivos de totalitarismo emanam também do manifesto do partido, onde se defendem ideias como a de “nacionalidade portuguesa originária” (aparentemente só quem tem pais portugueses por nascimento poderia ser realmente português); trabalhos forçados para prisioneiros (arbeit macht frei!); remoção dos órgãos genitais a sujeitos condenados por crimes sexuais (e depois espantam-se com a proposta de remoção dos ovários às mulheres que abortaram); integração das Forças de Segurança (assim, com letra grande!) numa única Polícia Nacional (o regresso das SS?); deportação de todos os imigrantes ilegais ou até dos legais desde que tenham cometido um crime grave (para os criminosos graves portugueses há a prisão perpétua); “recusar frontalmente o marxismo cultural e todo o seu cortejo de aberrações disformes e de realidades alternativas absurdas”( não especificam o que são, mas presumo que seja tudo o que vá  contra o pensamento único).

Passemos agora às contradições do discurso. Logo no primeiro ponto da sua declaração de princípios, o Chega afirma que defende a protecção da dignidade da pessoa humana e do valor fundamental da Liberdade nas suas diversas vertentes, mas recusa «a ditadura da Ideologia de Género, o aborto-a-pedido, as cirurgias de mudança de sexo e o apoio do Estado a toda a panóplia dos frutos do marxismo cultural», seja lá o que isso for. Mais à frente, repudia «qualquer forma de discriminação contrária aos valores fundamentais pelos quais se pautam as sociedades de matriz europeia». Ou seja, repudia mas só se for uma discriminação em conformidade com os ideais conservadores dos países brancos e cristãos. Alguém não leu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas tudo bem.

Descobri também que o Chega, afinal, é a favor da imigração desde que haja adopção plena da cultura portuguesa pelos recém-chegados. No ponto seguinte afirma que se deve «apostar em populações com raízes em culturas semelhantes à nossa». Ou seja, imigração sim, desde que sejam europeus, cristãos, louros e brancos, que claro, vão fugir dos seus países ricos para virem brincar aos pobrezinhos na apanha da fruta no Algarve.

Como o almoço foi leve e as náuseas eram suportáveis, continuei a esmiuçar os ideais deste partido (?) e dei-me ao trabalho de ler as “70 medidas para reerguer Portugal”. Podem poupar-se a tal empreitada porque podemos condensá-las em meia dúzia de ideias escritas em tom de conversa de taberna, apresentadas em diversos pontos como se fossem diferentes (para quem tiver interesse, ver 7 e 9, 7 e 14, 58 e 61, por exemplo).  Fiquei impressionada com algumas medidas, confesso.

Por exemplo, no número 60, o Chega defende que nos pedidos de nacionalidade, deve aumentar-se as exigências ao nível da lingua portuguesa, falada e escrita, bem como da integração cultural. Mas depois escreve coisas como “ trás consigo” e usa uma linguagem escrita ao nível do quarto ano de escolaridade. Será que os militantes do Chega poderiam perder a nacionalidade se chumbassem nesse teste? Isso é que era de valor.

No número 69, propõe uma medida que, sinceramente, vai acalmar as inquietações de grande parte dos portugueses.  Tem que ver com Saúde? Não. Educação? Não! Trata-se da «redução para metade dos custos inerentes às licenças de caça (especialmente caça grossa) e de toda a burocracia excessiva existente». Por esta é que vocês não esperavam. Digam lá se não é isso que vai reerguer Portugal?

No número 70 (o último, desta penosa lista) defende a introdução no ensino básico e secundário da «leccionação das boas práticas de combate ao desperdício, designadamente dos recursos naturais e nas áreas da alimentação e do vestuário». Ou seja, grande parte do conteúdo da disciplina de Cidadania que tanto têm criticado, mas sem o capítulo “Educação para a Sexualidade”, um dos subtemas do tema Educação para a Saúde, que por sua vez é um dos nove temas abordados na disciplina. Cruz credo, não vá um adolescente definir a sua sexualidade depois do que ouviu numa aula.

Muito mais haveria para escrever sobre todas contradições e argumentação falaciosa, mas já foi suficientemente penoso para mim ler os documentos referidos e descobrir que tenho doze amigos do Facebook que seguem a dita, alguns dos quais pessoas que eu tinha como mais informadas e ponderadas. De qualquer forma, o que interessa retirar deste texto não é o que diz o Chega, mas sim onde é que pode chegar graças a estas técnicas de propaganda populista.

É que a maioria dos americanos também não acreditava que o Trump ia mesmo construir um muro, nem concordavam com as tiradas misóginas ou os insultos de baixo nível que lançou aos adversários durante a campanha eleitoral. Votaram nele pelas promessas de mais emprego, uma economia forte, uma indústria revitalizada e independente da China. Desvalorizaram tudo o que era mau e agarraram-se aos dois ou três chavões inquestionáveis e socialmente aceites. E agora têm na Casa Branca um psicopata, ignorante e mentiroso, que despreza a verdade e semeia discórdia (o célebre dividir para reinar). Os brasileiros também não acreditavam que ao votar no Bolsonaro e nas promessas de pôr fim à corrupção e desgoverno dos anos PT estavam a pôr em causa a liberdade de expressão, a saúde pública, a Amazónia. Mas, surpresa, aconteceu.

Temo que o mesmo aconteça com André Ventura ou qualquer outro demagogo que o substitua num movimento como este. Provavelmente nunca chegará ao poder, mas não tenho dúvidas de que irá ganhar cada vez mais força na Assembleia da República. Vai conseguir convencer os moderados descontentes com o rumo do país com o argumento de acabar com corrupção e reformar o sistema político. Vai gritar várias vezes que tudo isto é uma vergonha. Vai apontar uns bodes expiatórios para todos os problemas sociais (nomeadamente os ciganos e os imigrantes ilegais) e apresentar soluções radicais, irresponsáveis e, acima de tudo perigosas. A receita usada por Hitler, por Mussolini, mas também por Estaline ou Mao Tse Tung. À esquerda e à direita, sem distinção. Não se riam. Não o subestimem. Fica o alerta.



filipafonsecasilva.com

1 comentário:

  1. Os primeiros a serem cativados, ou já foram, foram os da franja salazarenta do CDS rural embora ainda mascarada, os 'piquenos das tias' ainda vão ficando . A constatação é fácil, basta observar a cópia da contestação ao uso das máscaras, de protecção covid, pelos bolsonaristas e trumpistas, para ver toda a gente de cara tapada em Évora. A escolha de Évora foi para sacar definitivamente todos os votantes CDS da região e uma provocação ver-se-pega para causar sarilhos. Agora, ainda, não sabemos se o andré peruca é o verdadeiro ou se existe outro guardado para maiores aspirações.
    Outra coisa interessante foi a questão da recusa das listas: ou foi uma grande peça de teatro para dar a ideia e tal ou foi, realmente, com o conhecimento das sondagens começar o problema dos cabeças de lista nas autárquicas.
    E o perucas continua a dar aquela ideia do 'estou a causar embaraços' e por isso anda com guarda-costas por todo o lado. Resta saber se estes guarda-costas serão polícias requisitados ou organizados dentro do partido.

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