domingo, 20 de setembro de 2020

Memórias dos campos de trigo

 

10 JULHO 2020
Texto de Carlos Enes e Sónia BalasteiroFotografia de Mário Pereira


​​​​​​​Beja é rica em gastronomia e em tradição.​ ​​


Ergam os copos cheios com vinho da talha, que esta é a terra sagrada do pão. Os campos cobertos de trigo deram ao Alentejo a justa fama de celeiro de Portugal. Nalgumas tabernas de Cuba ainda se pode ouvir a voz afinada do ponto, desafiando um coral de compadres e camaradas a recordar essas jornadas épicas de trabalho:

- Ai de nós, ai de nós o que seria, ai de nós o que seria se o Sol um dia faltasse!

Desde que foi elevado pela UNESCO a Património Cultural Imaterial da Humanidade, o cante é agora mais fácil de encontrar no Cine-Teatro Pax Julia. O auditório enche-se para ver o Zambujo, filho da terra, a Celina, que é como se fosse, e as dezenas de grupos corais que respondem à chamada:

- Lá nos campos, secos campos, à calma, à calma a ceifar o trigo, pela força do calor.

Ao romper da bela aurora, grandes grupos de ceifeiras saíam a trabalhar e desafiavam em coro os perigos da unhagata e do cardo beija-mão. Os sobreiros e as azinheiras, com as suas sombras abençoadas, eram os maiores cúmplices do trabalho braçal sob um sol abrasador.

- Ceifeira! Ceifeira, linda ceifeira, hás-de ser o meu amor!

Veio a Reforma Agrária, entrámos na CEE, os novos foram para Setúbal e para Lisboa. O trigo passou a ser quase todo importado. As ceifeiras envelheceram e recolheram a casa, mas não ficaram propriamente confinadas. Ainda exibem a sua força nas modas tradicionais e nos pratos e canecas do artesanato da região.


Ana Matos Pires, directora do Serviço de Psiquiatria do hospital de Beja, veio para ficar

No princípio deste século, a barragem do Alqueva mudou definitivamente o cultivo e a paisagem. O olival intensivo cobre agora quase totalmente os arredores de Beja, mas a paisagem continua a convidar os homens a ver mais longe. A médica psiquiatra Ana Matos Pires, nossa guia apaixonada, recorda-se das palavras que ouviu ao chegar:

- Se subir à torre, consegue ver Palmela.


O alto da torre de 40 metros do castelo de Beja é o melhor miradouro do Baixo Alentejo

Do alto dos seus 40 metros, a torre de menagem do castelo de Beja revela o casario da cidade e os campos alentejanos até Espanha e o Algarve. É um dos mais belos exemplos da arquitectura militar da Idade Média em Portugal. Foi aqui que o imperador Júlio César celebrou, no ano 48 a.C., a pacificação da província romana da Lusitânia, até então território céltico.

Por isso, Beja foi baptizada pelos romanos de Pax Julia. Esse nome continua a ser exibido com orgulho por muitos negócios locais. Quanto ao castelo, polido de brio subiu ao cante:

- Castelo de Beja, subindo lá vais. Tu metes inveja, castelo de Beja, às águias reais.​


A Villa de Pisões é um dos vestígios romanos mais interessantes da Península Ibérica 

Em sentido contrário, nos anos 70, escavações arqueológicas puseram a descoberto uma espantosa exploração agrícola do tempo dos romanos. A Villa Romana de Pisões, a dez quilómetros de Beja, era uma abastada residência senhorial, com 48 divisões. Os pavimentos de algumas delas são adornados com mosaicos de uma minúcia surpreendente. «É um dos vestígios romanos da Península Ibérica com mais mosaico», elogia Conceição Fragoso, guia do centro interpretativo local, visivelmente apaixonada. Bem conservados, há mosaicos monocromáticos do século II e outros de várias cores, datados do século IV. Os arqueólogos têm encontrado muitos indícios da ocupação desta herdade bem depois do domínio romano.

Nos dez quilómetros de estrada para a Villa Romana de Pisões, pequenas oliveiras estendem-se até onde a vista alcança. À entrada, surge o rosa e o branco das amendoeiras em flor. O barrocal algarvio não está longe, mas o tempo deixou muitas diferenças marcadas na cultura.

- Minha terra é Beja, não o posso negar. Todos me conhecem pelo modo de cantar.

O grupo coral Cantadores do Desassossego reúne, todas as quartas-feiras, 26 homens no Centro UNESCO para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial. A distinção, em Novembro de 2014, contribuiu muito para despertar as novas gerações para a beleza das modas tradicionais. O cante sempre foi preservado pela transmissão directa dos mais velhos aos mais novos. «Comecei a cantar em rapaz, na taberna, com o meu pai e o meu avô», conta António Doutor, agora com 58 anos. Quando ele era moço, as famílias entregavam massas de trigo, milho e centeio às acarretadeiras para cozer pão em fornos comunitários.

- Alentejo, Alentejo, terra sagrada do pão.


O forno comunitário da Ti Bia Gadelha coze pão todas as sextas-feiras, para alegria de António Barahona, que não descansou enquanto não o viu restaurado

«A maior parte das pessoas não tinha possibilidades de cozer o pão em casa», explica António Barahona, da Associação de Defesa do Património de Beja. Foi ele o responsável pelo restauro do forno comunitário da Ti Bia Gadelha. Às sextas-feiras, o cheiro a esteva queimada anuncia nova fornada de pão cozido.

​O pão é a base da gastronomia alentejana. As açordas, de bacalhau, pescada ou cação, e as sopas, de tomate ou beldroegas, atraem bandos de turistas portugueses e estrangeiros, sobretudo espanhóis, aos restaurantes da região. O pão duro do Alentejo é ainda a base das saborosas migas, de tomate ou azeitona, e do “conduto” antigamente levado para o campo.

- Alhos, coentros e sal, também se faz com poejo. Esse prato que afinal nasceu no nosso Alentejo.

As delicadas ervas aromáticas são um dos segredos da imensa planície. «A gastronomia alentejana distingue-se pela capacidade de fazer coisas muito boas, com poucos recursos», recorda Ana Matos Pires. Os coentros, claro, mas também o poejo, a erva-doce, a hortelã, o louro dos refogados e um sem-número de outras ervas, com nomes sugestivos. Na Adega da Casa Monte Pedral, em Cuba, a carrasquinha oferece ao feijão com enchidos de porco preto um sabor ao mesmo tempo forte, sofisticado e surpreendente.

- Eu hei-de ir ao Alentejo, mesmo que seja no Verão.​​

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