domingo, 23 de agosto de 2020

QUEM INCENDIOU O PORTO DE BEIRUTE?


Nazanín Armanian 



A RECENTE EXPLOSÃO QUE ARRASOU BOA PARTE DO PORTO DE BEIRUTE CONTINUA A SUSCITAR MUITAS E JUSTIFICADAS INTERROGAÇÕES. MAS SE É DIFÍCIL AINDA EXPLICAR AS CAUSAS DO SUCEDIDO, OBSERVAR A QUEM INTERESSA ESTA TRAGÉDIA E QUE PROCURA TIRAR PARTIDO DELA É BASTANTE MAIS FÁCIL. ESTE ARTIGO FAZ UMA BREVE RETROSPECTIVA DE ANTECEDENTES QUE AJUDAM A APONTAR ALGUMAS RESPOSTAS.
“Reuni-me com alguns de nossos grandes generais e eles parecem sentir que foi um ataque”, revela Donald Trump sobre a explosão no porto de Beirute em 4 de Agosto, que destruiu parte da cidade, matou centenas de pessoas, feriu milhares e deixou ninguém sabe quantos desabrigados. Por toda a cidade, vêem-se grupos de ajuda cidadã que oferecem alimentos, roupas e até as suas casas - e apesar da pandemia - às famílias afectadas. As protectoras de animais também tratam os animais de estimação feridos e recolhem os que perderam os seus donos.
A teoria oficial do governo libanês aponta para uma negligência criminosa: que um incêndio inicial num armazém pirotécnico ou por uma soldagem atingiu um depósito de toneladas de nitrato de amónio, que produziu um cogumelo temível, embora neste caso se trate da “nuvem de Wilson”, o nome do gás de baixa densidade. Este cogumelo não ocorreu quando em 18 de Fevereiro de 2004 um comboio iraniano transportando o mesmo produto e petróleo explodiu na estação de Omar Kahyam, perto de Neishabur, deixando 300 mortos e 250 feridos, destruindo além disso centenas de casas em cinco localidades.
Uma segunda hipótese aponta para o Hezbollah como o autor das explosões, a fim de desviar a atenção do próximo anúncio do veredicto de 7 de Agosto do Tribunal Especial para o Líbano (ligado à ONU), que iria acusar quatro agentes do Hezbollah do assassínio do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri em 21 de Fevereiro de 2005.
“Se queres conhecer a verdade, ouve as crianças, os bêbados e os loucos”, recomenda a sabedoria popular, convidando-nos a reflectir sobre as palavras de Trump.
Depois de destruir Síria, Iraque, Líbia no Médio Oriente e conter o Irão - via sanções económicas, assassínios dos seus cientistas e militares e agora atacar no seu solo - a dupla EUA-Israel continua com a reconfiguração do mapa da região, à medida dos seus interesses, com dois objectivos: 1) expulsar o Irão do Líbano (assim como do Iraque e da Síria) e desarmar o Hezbollah, e 2) Destruir o Irão a partir de dentro, recorrendo à “Doutrina do Polvo” inventada pelo ex-ministro da defesa israelita Naftali Bennett: um cruel símile (tratando de animais) que afirma que, para matar o polvo não basta cortar os seus tentáculos, mas sim bater-lhe na cabeça. Desde há meses Israel vem seguindo as duas políticas em paralelo: atacar tanto os aliados da República Islâmica (IR) como os objectivos militares do Irão no seu próprio solo.
Caminho para o apocalipse
• 2 de Abril: a Mossad assassina Ali Mohammed Younis, comandante do Hezbollah e responsável por “caçar espiões, toupeiras e colaboradores” de Israel no Líbano, no sul do país.
• 23 de Abril: Israel acusa o Irão de um ataque cibernético a uma instalação de tratamento de água, alterando seus níveis de cloro e partículas químicas.
• 9 de Maio: um ciberataque israelita, - segundo o Washington Post -, provoca caos no sistema informático do porto iraniano de Sahid Rajaee, no Golfo Pérsico, por onde passam 55% das exportações e importações do país, interrompendo o seu tráfego comercial.
• 26 de Junho: explosão num depósito de gás da base militar iraniana de Parchín, perto de Teerão. Segundo o jornal kuwaitiano Al Jareeda, aviões israelitas F35 tinham entrado no espaço aéreo iraniano, cruzando o Iraque, para realizar a operação e voltar a casa o que, se verdadeiro, mudaria radicalmente a situação.
• 4 de Julho: incêndio na fábrica petroquímica de Bandar Imã Khomeini. Não está descartado tanto tratar-se de acidente como de um atentado.
• 6 de Julho: Incêndio na instalação nuclear iraniana de Natanz. A versão oficial considera primeiro um “acidente” e depois uma sabotagem, embora não esclareça se se tratava de uma bomba plantada ou de um ataque cibernético. Em 2009, os EUA e Israel, no primeiro ciberataque da história, destruíram parte dessa central nuclear enviando o vírus Stuxnet, ao qual ordenaram a autodestruição de centenas de dispositivos. Anos atrás, Israel havia bombardeado impunemente o reactor de Uzirak no Iraque (1980) e uma instalação nuclear na Síria (2007).
• 8 de Julho: o Fundo Monetário Internacional (ou seja, os EUA) recusa-se a transferir um crédito de 11 milhares de milhões de dólares ao Líbano, - vitais para por em marcha as infraestruturas paralisadas e dilapidadas do país -, se não realizasse “reformas políticas “, expulsando o Hezbollah do gabinete. Uma dívida de 86,2 milhares de milhões de dólares, a inflação, um elevado desemprego, e o crescimento da pobreza e da miséria colocaram em cheque o regime teocrático do Líbano.
• 9 de Julho: Duas instalações de água israelitas, na Alta Galileia e em Mateh Yehuda, sofrem ataques cibernéticos. É atribuído ao Irão.
• 13 de Julho: incêndio na instalação de energia em Zargan, no Irão.
• 23 de Julho: O ministro das Relações Exteriores da França, Jean-Yves Le Drian, reúne-se em Beirute com o primeiro-ministro libanês Hassan Diab, que governa com o Hezbollah, para lhe fazer um ultimato: deixará os libaneses morrer de fome e submeterá o país ao caos se não regressar à órbita do Ocidente: é curioso que entre os locais destruídos em 4 de Agosto se encontre o maior silo do país que armazenava 80% dos grãos importados, além de um depósito de medicamentos.
• 23 de Julho: Um caça dos EUA aproxima-se de um avião de passageiros iraniano com destino ao Líbano, forçando-o a aterrar na Síria, provocando numerosos feridos. Pretendia derrubá-lo e assim arrastar o Irão para uma guerra directa? Os EUA tinham esse objetivo quando em 1988 a sua Marinha abateu um Airbus iraniano no Golfo Pérsico, matando os seus 290 passageiros, entre os quais 66 crianças. Na altura, Khomeini também não aplicou o “Olho por Olho” à superpotência.
• 24 de Julho: O Chefe do Estado-Maior Conjunto do Exército dos EUA, General Mark Milley reúne-se em Israel com o Chefe do Estado-Maior deste país, General Aviv Kochavi, o Chefe do Mossad Yossi Cohen e outros altos funcionários da segurança israelita. O tema central é o Irão. Kochavi afirmou que se estão “a preparar para uma variedade de cenários” e “agirão na medida necessária para eliminar qualquer ameaça” para Israel “e evitar a sua violação por parte do Irão ou dos seus representantes”, assegurou.
• 27 de Julho: Israel ataca a cidade fronteiriça de Kafr Shuba e a fazenda Shanuh com tanques e canhões, acusando o Hezbollah de tentativa de infiltração, quando milhares dos seus agentes se passeiam à vontade pelo Líbano (e por toda a região).
• 28 de Julho: o Líbano anuncia a apresentação de uma queixa na ONU pela “perigosa escalada militar” de Israel. Era do conhecimento público que Netanyahu estava preparando um ataque maciço ao Líbano durante o verão.
• 30 de Julho: Zohar Palti, chefe do Gabinete Político-Militar do Ministério da Defesa e ex-chefe do Mossad participa da reunião do Grupo Consultivo de Políticas de Defesa EUA-Israel (DPAG) para discutir com o representante dos EUA James Anderson e os altos funcionários militares de ambos os países os “desafios de segurança estratégicos e regionais”, centrado no Irão, na sua actividade regional e seu projecto nuclear. Este mês, Israel implanta o escudo lança mísseis - antimísseis chamado Cúpula de Ferro na fronteira com o Líbano, e aumenta o número das suas tropas ali instaladas. Meses antes, havia instalado uma infraestrutura com “sensores” para detectar obras subterrâneas ao longo da fronteira libanesa.
• 2 de Agosto: Israel mata quatro membros do Hezbollah na vala de segurança entre Israel e a Síria nos Montes Golã ocupados, aumentando a tensão na fronteira comum. O exército israelita anuncia estar preparado para qualquer cenário.
• 3 de Agosto: Demite-se o ministro das Relações Exteriores libanês, Nassif Hitti, acusando o governo de Hassan Diab de conduzir o país para um “estado falhado”.
• 4 de Agosto: O inferno de enxofre e dor no Líbano enquanto em Israel se celebra o festival Tu B’Av de “encontrar parceiro”. Para o ex-deputado Moshe Feiglin, a morte dos libaneses é uma “oferta” de Deus no dia do amor judaico. Ele mesmo, com conhecimento em explosivos, afirma que o que aconteceu no porto de Beirute não foi um acidente: antes que o conteúdo do armazém caísse sobre “nós como uma chuva de mísseis”, disse, o seu país adiantara-se. Como pode um país sentir-se seguro e feliz vivendo cercado por infernos de guerra, de escombros e de dor? 
Em 2018, Netanyahu trouxe um mapa do porto de Beirute à Assembleia Geral da ONU com umas marcações que indicavam supostos depósitos de armas do Hezbollah, ou seja, que sabia do armazenamento do referido produto no porto de Beirute. Dois anos depois, um desses lugares é destruído. Coincidências? Desde então, a imprensa ocidental e árabe insistiam no “depósito de armas do Hezbollah” ali escondido e, ao não encontrar armas, passaram a dizer que, ao falar em armas, se referiam ao nitrato de amónia. De repente, este produto é encontrado em vários alojamentos na Bulgária, Chipre, Reino Unido e Alemanha. Pressões de Israel e Arábia Saudita?
• 5 de Agosto: demite-se Brian Hook, o enviado especial dos EUA ao Irão, um colaborador do demitido Rex Tillerson, o último diplomata dos EUA e defensor da permanência no acordo nuclear com o Irão; será substituído por um falcão: Elliott Abrams. Assim se põe fim a qualquer tentação de Trump de chegar a um acordo nuclear entre os dois países antes das eleições presidenciais dos EUA em Novembro.
• 6 de Agosto: aparece um salvador em Beirute para consolar o povo vítima, e não será nenhum líder “muçulmano” ou “árabe”, mas o presidente laico de um país europeu: Emmanuel Macron que pisará os escombros da velha Beirute, abraçará o seu povo e prometerá “um novo pacto político no Líbano” ameaçando com regressar em Setembro para assumir “a minha responsabilidade política”, disse. A que se referia? Não quererá ele declarar o Líbano uma província da França! Que organismo internacional lhe deu autoridade para intervir nos assuntos internos de outro Estado soberano?
• 7 de Agosto: o presidente do Líbano, Michel Aoun, já considera a possibilidade de que um míssil ou uma bomba tenha causado as explosões em Beirute. É possível que o fumo da primeira explosão tenha camuflado um míssil israelita apontado ao depósito de explosivos? É possível um ataque cibernético do Mossad a este edifício?
Obviamente, a hipótese de uma intervenção israelita não desculpa as incompetentes e corruptas autoridades libanesas por sua no mínimo negligência em evitar a catástrofe.
Por que se nega o atentado?
Tanto os governos do Irão como do Líbano e até mesmo o secretário de Defesa dos EUA, Mark Esper, e o próprio governo israelita estão a insistir na versão do “acidente”. Na imprensa iraniana há um forte debate sobre o “ataque israelita”, no entanto, um reconhecimento oficial desse facto colocaria tanto Teerão como o Hezbollah numa situação embaraçosa: a opinião pública treinada por eles mesmos, exigiria retaliação, todavia nenhum deles está em posição de aplicar a Lei de Talião.
Por seu lado, Trump e Netanyahu, enquanto continuam a mudar discretamente o mapa do Oriente Médio à sua medida, não estão para desencadear agora uma guerra total contra o Irão de dimensões que não possam controlar: fazem-na aos poucos.

O Médio Oriente, palco de seis guerras abertas, nas quais perdeu vários milhões dos seus entes queridos e que tem testemunhado como cerca de 100 milhões de seus vizinhos sofreram esta calamidade nos últimos 30 anos, não pode suportar mais conflitos armados.
A “guerra mundial” para se apoderar do Médio Oriente funde-se com o pulso entre as potências regionais - Israel, Turquia, Irão e Arábia Saudita - que procuram por um lado garantir sua segurança e por outro levar se puderem parte do bolo. Forçar a renúncia de Diab e colocar no poder Saad Hariri, o homem da Arábia Saudita e da França, apenas será abrir um novo ciclo no fustigado Líbano. Sabem por que não existe um movimento antimilitarista a nível regional e global?
Fonte: https://blogs.publico.es/puntoyseguido/6611/quien-prendio-fuego-al-puerto-de-beirut/

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