segunda-feira, 27 de julho de 2020

A balada da Amadora, a de Alfragide, a de Sines, a de Carcavelos

Imagens que mostram violência policial, imagens que mostram racismo por parte de agentes policiais, vão para o grande arquivo, o córtex cerebral. Ficam numas prateleiras específicas, umas de onde caem coisas quando se começa a pensar mesmo que não tenham sido a razão para se começar a pensar. Há coisas que têm essa persistência, muitas delas não são boas. Esta não é.
Quando se fala em racismo nas polícias, abusos policiais ou violência policial há pelo menos duas tendências:
  • A que defende que existem e que são recorrentes, e que normalmente também defende que os agentes em causa devem ser identificados, que se devem abrir inquéritos para se apurar os factos e que se deve agir em conformidade. Tem um pouco da lógica éticoretributiva que já move a polícia: dar um castigo a quem se porta mal, aquilo que os próprios já tentam fazer. É pensar na polícia da polícia. Já agora: desta metodologia pouco tem resultado. A maioria desses processos não dá em coisa nenhuma.
  • Outra, que crê defender as forças policiais, chama a atenção para a outra face da moeda: E quantos polícias são agredidos? Porque não se fala nisso?
Vamos então começar por esta ponta. Alguma tem que ser agarrada. Concordo, mas apenas em parte, com a primeira posição, em nada com a segunda. Porquê? O que existe não é uma luta entre polícias e bandidos, uma reprodução dos filmes e das séries de acção. O poder que a indústria cinematográfica e televisiva americana teve na formação das consciências merecia um tratado. Não há luta nenhuma. Há polícias, têm autoridade e espera-se delas que defendam o estado de direito.
Um parêntesis: As posições radicais sobre este tema dão pouco ou nenhum valor às incumbências policiais e às próprias polícias. Dou o exemplo da defesa da propriedade. Não quero assustar ainda: este não é um artigo anarquista ou com propósitos de propagação marxista como o desvalor da defesa da propriedade. Mas, olhem, nada como avistar os bons valores, como a liberdade e o fim das desigualdades sociais, na sua radicalidade, para evitar pisar mau terreno no pensamento. É como ir buscar um tempero que é excelente mas altamente concentrado, imaginemos um picante muito forte: tornará melhores os pratos mas tem que ser adicionado com parcimónia, em grandes quantidades poucos o conseguem engolir. Assim é o radicalismo. Não é aqui o objectivo defendê-lo. Não desta vez.
Acredito que as polícias são necessárias e que têm as incumbências certas. As regras devem existir e devem ser cumpridas para conseguirmos viver uns com os outros.
Sei é que tal qual estão pensadas e estruturadas não servem.
E é aqui que a porca torce o rabo. As nossas polícias são obsoletas e não será por culpa dos seus agentes vindos, a grande maioria, de classes desfavorecidas, com baixas condições remuneratórias, poucos e degradados equipamentos, turnos que os sobrecarregam física e psicologicamente e alguma sensação de ingratidão por parte da comunidade que devem proteger. Homens com uma formação que, está à vista, foi muito fraca e altamente permeáveis a discursos populistas que não os aliciam com uma solução para as vidas difíceis que têm (essa luta chegaram a tentá-la no governo do Cavaco e essas imagens, muito boas imagens, também merecem ser guardadas no grande arquivo ao lado das referidas do início do artigo), vão lá pela polarização: mais autoridade, mais diferenciação entre polícias e cidadãos e a visualização de um potencial bandido em cada cidadão, sobretudo nos de determinado escalão social, etário e étnico.
Pobres contra pobres.
São traidores de classe, pensam os radicais. Alguns dizem-no.
Mas não, são homens numa posição delicadíssima e isso tem que ser reconhecido em sua defesa.
Mas abra-se então a porta do salão policial e que se espreite lá para dentro.
Porque é preciso um agente da PSP, portador de uma arma de fogo, à porta da loja do cidadão? E à porta do Pingo Doce? Porque precisam de estar armados os agentes que verificam se temos a carta de condução ou a inspeção do carro em dia?
É uma ilusão, esta consciência tem que existir, achar que ter mulheres ou homens armados por perto aumenta a segurança. Se assim fosse os Estados Unidos seriam um país seguro e seria mais seguro armar os porteiros das discotecas – no tempo em que as havia - e já agora armar quem faz segurança nas portarias dos prédios. São os agentes policiais pessoas diferentes destas? Não são. As tais imagens mostram que são falíveis, altamente vulneráveis à raiva e inquinados por preconceitos.
Acima de tudo importa pensar as polícias de acordo com princípios. Grande parte do trabalho policial, mesmo o considerado “operacional” não exige que os agentes tenham armas de fogo. Isto é compreendido em vários países. Em Portugal costuma-se ir buscar os exemplos de fora para dizer que vai ser bom cá dentro. Seguindo esse método veja-se o exemplo do Reino Unido: Em 2016 dos mais de 126 mil polícias de Inglaterra e do País de Gales, só 5639 (menos de 5%) estavam autorizados a usar armas. Escolhi este ano porque foi precisamente quando foi esfaqueado um agente, que não estava armado, no atentado terrorista na ponte de Westminster em Londres, o que reacendeu o debate à volta da necessidade de agentes policiais andarem armados. Não a ponto de mudar a filosofia policial. O estado inglês teme fazer-se representar por homens armados e dispensa que assim seja. Ainda bem. Um aspecto importante aqui é que uma pesquisa realizada pela Federação de Polícia sobre este tema constatou que 82% dos agentes não queriam andar armados e, ao mesmo tempo, que metade deles afirmou ter já estado em “grave perigo”. Há outros exemplos como a Irlanda e a Nova Zelândia.
Suponho que apostem na preparação física, aspecto que em Portugal deixa bastante a desejar.
Entrar para a polícia não devia habilitar uma pessoa a andar armada e é certo que não é necessário que esteja para grande parte do trabalho que faz e é ainda certo que esse pode ser – e é – um factor de insegurança e não de segurança para a comunidade. Os agentes que sejam portadores de armas de fogo deverão ter um processo de selecção à parte, um processo que avalie efectivamente o perfil do candidato e a sua capacidade para gerir esse poder.
Mais, grande parte do trabalho das polícias é de natureza administrativa, até jurídica, e se seria bom que tivessem melhor preparação para o fazer.
Há aqui uma grande oportunidade: uma significativa percentagem dos agentes da PSP não tem condições – designadamente etárias, para a parte operacional que poderia exigir mulheres e homens com armas de fogo. Que se invista na sua preparação, uma mais especializada, para o desempenho dessas funções.
Entremos pelo salão adentro: Formação.
Que formação têm estes homens? É contínua? É uma pergunta que não é bem uma pergunta. Não há resposta que convença que existe e que é boa. É reconfortante encontrar – e encontram-se – agentes policiais que tratam os cidadãos com o respeito que lhes devem e com um sentido de serviço que convive com o de autoridade. Não são a regra. O estado está ser representado por quem não defende, ou não conhece, princípios constitucionais: todos os cidadãos têm a mesma dignidade e são iguais perante a lei, ninguém pode ser discriminado em razão de factores como a raça, território de origem, condição social ou orientação sexual. E já agora: a constituição proíbe as organizações fascistas e transpira que um número crescente de agentes tem o pezinho a puxar para esses lados. A sério: Fazer cumprir o Código da Estrada, ou mesmo o Código Penal, sem respeitar o que está previsto na constituição, não dá. É uma fraude.
Alguém olhe para isto. É que se as coisas não forem pensadas a bem e com tempo e se isso acontecer na sequência da explosão de uma bomba, sim é uma bomba a manutenção da lógica policial como está, a segurança - valor tão prezado por quem defende a manutenção de polícias armadas, autoritárias, repressivas e com pouca formação - está posta em causa. E é triste que seja necessária uma tragédia para gatilho da reflexão que deve ser feita.
Que 2020 sirva para ensinar que o improvável acontece quanto mais o que se adivinha. Que sirva para relembrar que isto dá grandes cambalhotas, sempre deu, e que depois de chegar o tsunami já é tarde para as aulas de natação.
Nota final: Falou-se aqui de racismo sem falar muito de racismo. Assim foi porque esse é o grande tema. Merece ser tratado à parte e não a propósito de policias, por mais impossível que seja falar destas sem falar de racismo.

expresso.pt

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