sexta-feira, 19 de junho de 2020

A raiva pode governar bem?




A raiva afeta há anos as nossas sociedades e inundou o espaço público. Primeiro começou nas caixas de comentários dos sites de jornais, passou para os blogues e depois foi para as redes sociais. Agora está nas ruas, todos os dias, em todo o lado.
A raiva é antidemocrática porque a raiva é cega e, por isso, impede que vejamos o que os outros têm para nos mostrar.
A raiva é antidemocrática porque é surda e, por isso, não deixa que ouçamos o que os outros têm para nos dizer.
A raiva é antidemocrática porque é antissocial e, por isso, deixa-nos enquistados num grupo fechado de pessoas e ideias.
A raiva é antidemocrática porque se alimenta do ódio e só quer destruir, eliminar, calar quem discorda de nós.
A raiva é antidemocrática porque é alienante, não admite oposição, e por isso dá mãos livres e mais poder a quem espalha esta doença.
A raiva teve ontem uma pequena derrota com a demissão do até agora ministro brasileiro da Educação, notável portador deste vírus, espalhado pelo campo de batalha feroz onde se faz o combate político daquele país
Esta raiva que nos infeta é o pão do autoritarismo moderno e a água da intolerância irracional que despreza o outro.
A raiva teve ontem uma pequena derrota com a demissão do até agora ministro brasileiro da Educação, Abraham Weintraub, notável portador deste vírus, espalhado pelo campo de batalha feroz onde se faz o combate político daquele país.
Ele é autor de inúmeras frases incendiárias, como estas três exemplificam:
1 – Weintraub coloca em setembro de 2019, no Twitter, uma foto sua com a cadela Capitu, mais um saco plástico para recolher fezes a ilustrar esta legenda: “Os Weintraub são uma família democrática. Temos diferentes opiniões. A Capitu, inclusive, é de esquerda. Porém, sempre recolho suas propostas quando ela as libera em público!”
2 –  Weintraub envolve-se numa discussão  no Twitter, em novembro último, e remata assim, para tentar calar o interlocutor: “Uma pena, prefiro cuidar dos estábulos, ficaria mais perto da égua sarnenta e desdentada da sua mãe”.
3 – Weintraub ataca os juízes do Supremo Tribunal Federal brasileiro numa intervenção feita durante uma reunião ministerial, em abril passado, e atira esta frase: “Por mim, botava esses vagabundos na cadeia. Começando no STF”.
A raiva teve ontem outro pequeno revés, quando se soube que o Facebook removeu vários anúncios políticos do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump
A raiva, hoje, é uma profissão. Vanguardas organizadas promovem e tentam destruir reputações pessoais, ideológicas, empresariais, desportivas, institucionais, conforme a vontade do cliente ou a cor da militância. Eles mentem, eles manipulam, eles elegem, eles derrubam. A raiva é uma arma suja ao serviço de quem paga melhor.
A raiva elege poderosos que dividem os seus povos, reforça o poder de líderes de fação, cava trincheiras de ódio entre irmãos.
A raiva está na desordem das ruas, na violência policial burra e cega, nas manifestações onde a violência mata a reivindicação, na sabotagem da participação cívica.
A raiva está nos gabinetes ministeriais, nos conselhos de guerra, nas assembleias de acionistas, nas administrações das corporações.
A raiva cresce, imparável, com a pobreza e a exclusão, e toma conta das ruas dos bairros pobres e dos jardins dos condomínios dos ricos.
A raiva teve ontem outro pequeno revés, quando se soube que o Facebook removeu vários anúncios políticos do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que para criticar a extrema-esquerda exibia um triângulo vermelho invertido, símbolo utilizado pelos nazis para identificar presos políticos nos campos de concentração.
“Não permitimos símbolos que representam organizações odiosas ou ideologias odiosas, a menos que seja para condená-las”, disse o diretor de regulamentos de segurança cibernética do Facebook, Nathaneil Gleicher, numa inquirição no Congresso dos Estados Unidos da América.
Mas a raiva bem pode rir da fraqueza dos seus inimigos, bem pode sacrificar capitães seus como o ministro Weintraub ou mesmo generais como o presidente Trump: quando nesta guerra o Facebook, mesmo tendo razão, passa a ser, em vez dos estados, em vez dos povos, o detentor mundial da definição de quais são ou deixam de ser as “organizações odiosas ou ideologias odiosas”, sobre as quais não podemos falar em público, então a raiva, afinal, ganhou mesmo à democracia, ganhou mesmo à soberania dos povos, ganhou mesmo à liberdade, ganhou mesmo a guerra para dominar o governo do planeta.
*Pedro Tadeu, Jornalista, Portugal

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