domingo, 21 de junho de 2020

A comunidade de cavalos-marinhos que vive na Ria Formosa

Enigmático, desejado e abundante. 

O cavalo-marinho é o ícone da ria Formosa, mas o seu futuro continua em aberto.
Texto e Fotografia Nuno Sá
O cavalo-marinho é um dos peixes mais enigmáticos. São-lhe atribuídas propriedades farmacológicas, que motivam a captura ilegal. Em Portugal, vive uma das maiores colónias do mundo.
Os últimos raios de sol enchem o céu de tons quentes no final de um dia de Verão na ria Formosa. Numa pequena esplanada da zona ribeirinha de Olhão, um grupo de pessoas contempla a paisagem constituída por um intrincado labirinto de sapal, canais e ilhotas. No entanto, para Janelle Curtis, investigadora do projecto internacional Seahorse, o interesse não está no céu, mas sim na superfície calma da água. A bióloga mal acredita no que vê: vários pequenos cavalos-marinhos nadando vagarosamente à superfície. Ainda não o sabe, mas está prestes a descobrir a maior comunidade de cavalos-marinhos do mundo.
Os cavalos-marinhos pertencem à mesma família dos dragões-marinhos e das marinhas.
Os cavalos-marinhos pertencem à mesma família dos dragões-marinhos e das marinhas. 
A designação do género Hippocampus, ao qual pertencem as 37 espécies conhecidas de cavalos-marinhos, deriva do grego Hippos (cavalo) e Kampi (monstro marinho). Trata-se da adopção literal do nome da criatura da mitologia grega Hipocampo, descrita por Homero como um monstro marinho dotado de patas dianteiras de cavalo e uma cauda de peixe, que Posídon, deus dos cavalos e do mar, utilizaria para se deslocar sobre a superfície dos oceanos.

Apesar de ser há muito reconhecido pelo público pelo seu aspecto peculiar e características biológicas distintas, a ecologia e a biologia do cavalo-marinho continuam imersas em falhas de conhecimento no que se refere à sua sobrevivência, crescimento, reprodução e movimento. É verdade que são conhecidas algumas curiosidades da sua ecologia, como o facto de ser o macho a dar à luz, fertilizando internamente os óvulos que a fêmea deposita numa bolsa na base da sua cauda. Ou o facto de o macho e a fêmea manterem uma relação monogâmica ao longo do ciclo reprodutor, com comportamentos ritualizados de acasalamento, que se iniciam com a alteração dos padrões de cor em resposta ao estímulo de um dos parceiros, a sincronização da natação e o entrelaçar das caudas nadando em conjunto. Mas faltam dados científicos sobre estas espécies. 
O sistema de bancos de areia e pequenos cursos de água do Parque Natural da Ria Formosa é único no país. Mapa: NGM-P.

União Mundial de Conservação da Natureza (IUCN) funciona desde 1948 como um barómetro do estado da população de espécies de todo o mundo, classificando o nível de risco para a sobrevivência de cada uma. Porém, mais preocupante do que os níveis de risco, será o facto de a IUCN não dispor de dados para avaliar o estatuto de cerca de um quarto das espécies de peixes a nível mundial, uma percentagem quatro vezes maior do que para as aves ou mamíferos. Os cavalos-marinhos seguem esta tendência de falta de informação agravada, pois, para 61% dos membros da família dos singnatídeos, não existem dados suficientes. Os restantes 39% estão vulneráveis ou em risco. 
O projecto Seahorse foi criado em 1996 com o propósito de aprofundar os conhecimentos sobre estes animais carismáticos.
Tendo como maior patrocinador uma famosa produtora de chocolates belga cujo símbolo é um cavalo-marinho, o projecto Seahorse foi criado em 1996 com o propósito de aprofundar os conhecimentos sobre estes animais carismáticos e alertar para os problemas que afectam os seus ambientes. A bióloga canadiana Janelle Curtis, um dos mais de quarenta membros Seahorse espalhados por diversas partes do globo, definiu como objectivo da sua investigação responder a uma questão crucial: averiguar o estado da população das duas únicas espécies de cavalos-marinhos existentes no Mediterrâneo e Atlântico – o Hippocampus hippocampus e o Hippocampus guttulatus. Para ambos, não existem ainda dados suficientes de conservação.
Uma perspectiva aérea do Parque Natural da Ria Formosa permite avaliar a dimensão desta área protegida e a fragilidade do seu sistema dunar.

Após regressar de uma decepcionante viagem ao Sul de Espanha em busca de um local para estudar estas duas espécies de cavalos-marinhos no seu ecossistema, Janelle aproveitou uma viagem a Portugal para se deslocar a Olhão e confirmar a ocorrência destes peixes na ria Formosa. Rapidamente percebeu que tinha encontrado o local que lhe permitiria dar resposta às falhas no conhecimento sobre as duas espécies.
Durante um período de dois anos, mergulhou na ria, definindo uma grelha de estudo de 5.760 metros quadrados e utilizando técnicas como a marcação de cavalos-marinhos com tinta fluorescente para determinar a sua mobilidade. Colocou também gaiolas in situ para capturar e contar o número de juvenis produzidos por cada macho. Os dados recolhidos foram surpreendentes: estima-se que a população de cavalos-marinhos da ria Formosa ronde os dois milhões de animais, uma densidade superior às maiores comunidades de qualquer espécie de cavalo-marinho anteriormente descobertas em locais como a Austrália, África do Sul e Filipinas. À data desse levantamento, a ria Formosa comportava a maior comunidade de cavalos-marinhos alguma vez estudada a nível mundial.
Os dados recolhidos foram surpreendentes: estima-se que a população de cavalos-marinhos da ria Formosa ronde os dois milhões de animais.
Nos últimos seis anos, os mais de 18 mil hectares de sapal, canais e ilhotas protegidas do oceano Atlântico por ilhas-barreira arenosas, que compõem o sistema lagunar da ria Formosa, têm funcionado como um “laboratório vivo”, permitindo realizar os primeiros estudos sobre reprodução, sobrevivência, crescimento e movimento das únicas duas espécies de cavalos-marinhos do Mediterrâneo e do Atlântico. 
O projecto já conta com um membro efectivo da organização em Portugal, o doutorando do Centro de Ciências do Mar (CCMAR) da Universidade do Algarve, Miguel Correia, que tem dado continuidade ao trabalho de investigação iniciado por Janelle Curtis.
Embora a espécie H. guttulatus, que pode medir mais de 20cm, seja dez vezes mais abundante do que o pequeno H. hippocampus, apenas olhos experientes conseguem distingui-las. Miguel Correia é um desses peritos. “O segredo está na forma da sua cabeça”, explica. Apesar de a cor variar entre o castanho, o amarelo, o verde e o vermelho, eles possuem ainda a capacidade de adaptar o seu tom ao do meio circundante. 
Os machos tornam-se muitas vezes quase brancos na altura da reprodução, época em que podem ser vistos a nadar lado a lado com a cauda entrelaçada com a da fêmea. 
Os investigadores procuram averiguar as causas para o declínio das populações de cavalos-marinhos, propondo medidas que permitam a recuperação da população para valores verificados no passado recente. 
Durante um mergulho, consegue-se regularmente encontrar entre 15 e 20 cavalos-marinhos: os mais abundantes, H. Guttulatus, geralmente dissimulados em zonas de algas com as suas caudas enroladas em zosteras, e os pequenos H. Hippocampus, mais comuns, em zonas abertas de fundo misto de areia e conchas. No entanto, há nuvens no horizonte. 
De acordo com Miguel Correia, “apesar da abundância de animais, estamos perante uma quebra muito significativa da população de ambas as espécies desde a descoberta de Janelle Curtis em 2001-2002”. Nos últimos dois anos, Miguel Correia e Iain Caldwell, outro investigador do projecto, revisitaram os mesmos locais e aplicaram os mesmos métodos para averiguar a evolução da população de cavalos-marinhos. 
Desta vez, os resultados não foram tão animadores: a população da espécie H. guttulatus sofreu uma quebra de 85% e a de H. hippocampus 56%.
Ao abrigo do projecto da recuperação da população de cavalos-marinhos, foi possível reproduzi-los em cativeiro, um desfecho inédito nesta espécie.
De acordo com o biólogo português, “a ria Formosa é um sistema dinâmico, sofrendo alterações na tipologia dos fundos e seu substrato, dos quais os cavalos-marinhos dependem. Para além disso, também temos de ter em conta flutuações naturais na população que se pode ter tornado insustentável para o meio que a acolhe”. No entanto, uma quebra tão significativa é um indício claro de que existem factores que têm de ser equacionados para determinar a causa da diminuição da população. “A perda de habitat parece ser a causa mais provável desta quebra, especialmente tendo em conta que tem sido detectada uma diminuição de pradarias marinhas fundamentais para fixação dos cavalos-marinhos”, esclarece. 
Os cavalos-marinhos parecem ter encontrado na ria Formosa um santuário onde se encontram a salvo.
Apesar destes sinais preocupantes, os cavalos-marinhos parecem ter encontrado na ria Formosa um santuário onde se encontram a salvo da maior ameaça à sua sobrevivência – a captura para venda no mercado asiático. Todos os anos mais de 50 toneladas de cavalos-marinhos são capturadas no mundo e enviadas para aplicação na medicina tradicional oriental ou para utilização ornamental. Para além de a sua captura não ser permitida na ria Formosa, o Grupo de Investigação em Biologia Pesqueira e Hidroecologia do CCMAR concebeu e desenvolve um projecto de criação de cavalos-marinhos em cativeiro, tendo-se tornado a primeira instituição a nível mundial a conseguir a reprodução com sucesso da espécie H. guttulatus.
O projecto do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve e do Seahorse foi premiado no final do ano passado pelo Fundo InAqua, um programa de apoio às iniciativas que contribuem para a sobrevivência de espécies marinhas ameaçadas, criado pelo Oceanário de Lisboa e pelo National Geographic Channel.
De acordo com Jorge Palma, responsável pelo projecto, “a criação em cativeiro é um elemento-chave para a conservação da espécie. Permitirá diminuir a pressão sobre a recolha de cavalos-marinhos do seu ambiente e servirá, caso necessário, como meio de repovoamento da espécie em locais onde foi outrora abundante. Para além disso, muitos aquários têm interesse nesta tecnologia como forma de suprimir autonomamente a necessidade de exemplares selvagens para as suas exposições”.
No final da peça “Ricardo III”, Shakespeare imagina o monarca em desgraça, disposto a trocar todo o seu reino se alguém lhe oferecer um cavalo. Só o futuro ditará se a ciência e tecnologia conseguirão encontrar atempadamente uma solução para devolver a estes pequenos cavalos do mar o seu velho reino da ria Formosa.

nationalgeographic.sapo.pt

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