De há muito que embirro com fardas. Ficou-me desde que fui (mal) fardado pela primeira vez. Acho que a farda tira ao comum mortal a sua diferente identidade e torna-o demasiado parecido com outros tantos, sempre demais. E será para isso mesmo que existem e servem – transformar o indivíduo numa peça de uma instituição, ostentando a fidelidade obediente como valor.
O certo é que a maior parte dos miúdos passam por uma fase em que adoram fardas. Seja de bombeiro, de polícia ou músico de banda. Provavelmente porque os fardados lhes aparecem como adultos especialmente vocacionados para mandarem mais, até que os adultos. Talvez porque gostassem de ser adultos com super autoridade para escaparem à autoridade dos adultos que neles mandam.
Também tive a minha fase de adorar fardas e sonhar com o dia em que tivesse direito a uma. A minha grande oportunidade surgiu cedo, quando tinha os meus dez anos. Na altura, era obrigatório pertencer-se à Mocidade Portuguesa e logo a partir dos dez anos de idade. Todos os sábados havia instrução para-marcial (aprendi cedo a marcar passo) e mais umas tretas de actividades desportivas e lúdicas. Lá consegui que me comprassem a fardeta: calções e meias altas castanhas, camisa verde com emblema, bivaque na cabeça e cinto castanho com uma fivela branca com o enorme S metálico incrustado a simbolizar a fidelidade a Salazar. Farda nova enfiada, saí orgulhoso rua fora a entornar vaidade naquela minha novíssima qualidade de cidadão fardado. Claro que esperei e ansiei por olhares de inveja e espanto dos míseros passantes reduzidos à condição de anónimos e inferiores civis.
Vivia então o Barreiro uma altura em que a repressão estava na exacta medida da energia das lutas operárias por melhores condições de vida. Eu não sabia na altura, mas o Barreiro (assim como a Marinha Grande) eram vilas operárias sob ocupação militar (entregue à GNR). Não sabia nada disso, não queria saber e não entenderia se isso me explicassem. O que sabia é que o Barreiro era, como a maioria, uma terra de fardas – uma série de bandas de musica, os bombeiros, os escuteiros, os GNRs por tudo quanto era sítio, mais as fardas de ganga do pessoal das fábricas. E, em terra com fardas, eu tinha a minha, a de lusito. Que, é claro, achava mais catita que todas as outras.
O meu orgulhoso e inaugural desfile fardado não teve grande sucesso. Pior, foi um verdadeiro fiasco. A malta graúda assomava às portas das tabernas, desatava a rir-se, chamava-me piolho verde e, pior, escarnecia-me nas costas com olha mais um que é da bufa. Naquela terra com fardas, não entendi porque é que a minha farda merecia aquele tratamento, bem longe dos desejados suspiros de admiração e inveja. Bom, o certo é que rapidamente conclui que não ganhava nada com o negócio de me fardar na miragem de conseguir olhares com palmas. Encurtei o trajecto. E respirei de alívio ao desfardar-me. E disse para comigo: fardas nunca mais!. Longe estava de suspeitar que a farda me havia de vestir outra vez, mais um tanto de vida passado, sem poder despegá-la da pele. Verde, outra vez verde, era a farda. E pelo pior uso que se pode fazer de uma farda, o da guerra. No cú pior das cús das guerras do meu tempo de usar farda, o da Guiné.
 
Biografia de João Tunes.
caminhosdamemoria.wordpress.com

Salazar controlou tudo. Até os ousados fatos de banho das refugiadas

Decreto-lei de 1941 estipula que o traje de banho das senhoras deve ter “calção justo à perna”. Para os homens “fato inteiro”
FOTO ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL DE CASCAIS - COLEÇÃO HOTEL PALÁCIO

Em 1940, Portugal recebeu milhares de refugiados em fuga de uma Europa que era mais tolerante nos costumes, mas estava em guerra. As mulheres estrangeiras fumavam, usavam saias curtas e iam sozinhas paras os cafés, deixando muitos homens portugueses embasbacados com tanta modernidade. No ano seguinte, para prevenir alegados atentados ao pudor nas praias, Salazar legislou sobre o que os fatos de banho devem esconder. E porque estamos em plena época balnear, o Expresso republica este texto sobre o tamanho dos maillots noutro tempo..

Ditadura e regulamentação da liberdade no vestir andam muitas vezes de mão dada, e Portugal não escapou a nenhuma delas. Em maio de 1941, o ministro do Interior, Mário Pais de Sousa, dois anos mais novo do que António Salazar e conterrâneo do ditador, decidiu prevenir o aparecimento de gente com o corpo excessivamente à mostra nas praias nacionais, antes que os portugueses, mas sobretudo as mulheres, adotassem os trajes de milhares de refugiados estrangeiros que cruzavam as nossas fronteiras.
É neste contexto de contacto com novos hábitos e costumes, de mulheres que fumavam e se sentavam sozinhas nas esplanadas, que o Governo decreta que “nos termos da Constituição, pertence ao Estado zelar pela moralidade pública e tomar todas as providências no sentido de evitar a corrupção dos costumes. Factos ocorridos durante a última época balnear mostraram a necessidade de se estabelecerem (...) as normas adequadas à salvaguarda daquele mínimo de condições de decência que as conceções morais e mesmo estéticas dos povos civilizados ainda, felizmente, não dispensam”.
Mulheres em fato de banho, homens vestidos, e um com roupa de país árabe, numa praia da zona do Estoril
Mulheres em fato de banho, homens vestidos, e um com roupa de país árabe, numa praia da zona do Estoril
FOTO ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL DE CASCAIS - COLEÇÃO HOTEL PALÁCIO
O decreto diz que só será permitido “usar e vender fatos de banho que não contrariem as condições mínimas oficialmente fixadas e tornadas públicas” que o “uso dos fatos de banho é restrito às praias, piscinas e outros locais destinados à prática de natação, sendo rigorosamente proibido ostentá-los fora desses lugares”. O legislador acrescentou estar atento “às exigências do desporto de natação”.
A lei não mencionava as características dos fatos de banho − que serão descritas em editais posteriormente afixados nas zonas balneares... e que aí permaneceram durante largas décadas, sobrevivendo alguns, para amostra, depois do 25 de Abril de 1974, quando já tinham prescrito pelo uso.

LEI VISAVA HOMENS E MULHERES

Ao contrário da tentativa de regulamentação que o governo do Presidente da França, François Hollande, tentou impor recentemente − e que foi vetada pelo tribunal − o decreto-lei do ministro Pais de Sousa impunha limitações de traje de banho a homens e mulheres: os homens poderiam mostrar as costas até à cintura, as mulheres só até 10 centímetros acima da cintura. O fato de banho delas tinha de ter um saiote que cobrisse em pelo menos um centímetro a parte de baixo do calção justo à perna, enquanto o calção deles teria de ter um comprimento de perna mínimo de dois centímetros, e tapar a barriga, podendo ser inteiro ou de duas peças, conforme se lê no edital de julho de 1952, da capitania de Cascais, que reproduzimos.
Estes editais permaneceram afixados nas praias portuguesas durante décadas. A partir dos finais da década de 1950 os incumpridores eram muitos e já não eram incomodados com multas
Estes editais permaneceram afixados nas praias portuguesas durante décadas. A partir dos finais da década de 1950 os incumpridores eram muitos e já não eram incomodados com multas
ARQUIVO A CAPITAL
Apesar de os homens serem visados pelas normas do traje de banho, e de a fiscalização ter sido efetiva − com recurso a fita métrica − a repressão sobre a forma de vestir das mulheres − ou pelo menos uma fortíssima pressão social − era uma das maiores preocupações da Mocidade Portuguesa Feminina (MFP), que em conjunto com a OMEN [Obra das Mães pela Educação Nacional], iniciara a campanha pela “moralização das praias” em 1936.
A historiadora Irene Flunser Pimentel, no livro “Organizações Femininas do Estado Novo”, lembra que a este caldo de MFP e OMEN “se juntou a imprensa católica, que acusou a ‘judiaria’ e o protestantismo pela difusão da ‘pornografia, nudismo e satã sensualidade’. A recorrência dos artigos sobre o ‘pudor’ nas praias e expressões para afugentar as troças que recaíam sobre as filiadas que usavam o fato de banho regulamentar da Mocidade são reveladores de que a austeridade e o moralismo da MPF não encontravam, no entanto, grande adesão entre as jovens das classes média e alta. Num artigo sobre a praia do Estoril, a articulista elogiou o fato de banho da MPF e apelou às leitoras para abandonarem o ‘maillot feio e impróprio’ ’’, acrescenta Pimentel, transcrevendo o apelo da articulista do artigo publicado no Boletim da MPF de julho de 1939:
Jovens vestindo o modelo de fato de banho da Mocidade Portuguesa Feminina, que procurava moldar e propagandear um ideal de mulher do Estado Novo
Jovens vestindo o modelo de fato de banho da Mocidade Portuguesa Feminina, que procurava moldar e propagandear um ideal de mulher do Estado Novo
BOLETIM MPF, JULHO DE 1941, HEMEROTECA MUNICIPAL DE LISBOA
“Tende personalidade e coragem para afirmar essa personalidade não vos acanhando de aparecer corretas, mas sabendo dar alegremente o exemplo. A vossa influência pelo exemplo pode ser enorme. [...] Raparigas da Mocidade, o vosso dever é reagir contra tudo o que é mau. Se vos criticarem, que importa? [...] Vesti com orgulho o fato de banho da Mocidade: ele fala por vós e diz aos que vos veem quem vós sois: verdadeiras raparigas alegres e saudáveis – mas puras”.
Detalhe da primeira página do Diário de Notícias de 11 setembro de 1940
Detalhe da primeira página do Diário de Notícias de 11 setembro de 1940
ARQUIVO BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL
Por oposição à campanha de propaganda da MPF, em setembro de 1940, o “Diário de Notícias” colocou na primeira página uma foto com duas mulheres em fato de banho e escrevia: “Portugal é a praia ocidental da Europa, onde se falam agora todas as línguas e se encontram mulheres de todo o tipo de beleza”.
A chegada das refugiadas estrangeiras abanou e arejou um Portugal cinzento e fechado sobre si próprio, e pôs (alguns) os homens portugueses em alvoroço e a hierarquia religiosa em alerta.
No seu livro “Recordações de um Caminheiro” − citado por Irene Pimentel em “Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial” − o escritor, dramaturgo e advogado antifascista Alexandre Babo recorda as "esplanadas da Avenida ou do Rossio” onde se viam “franceses, belgas, holandeses, judeus dos mais remotos lugares”.
O autor também se refere a uma das pastelarias mais famosas da Lisboa de então: “À Suíça, no Rossio, já chamavam o ‘Bompernasse’, [numa alusão às pernas das mulheres que passeavam pela zona parisiense de Montparnasse]”, porque por ali “predominavam as mulheres (...) fumando em público. (...) Tudo isto era murro na boca do estômago do provincianismo nacional. (...) Aquela gente aparentava outros hábitos, mais livres, mais naturais e abertos (...) sem olharem (elas) de soslaio os machos, sentadas nos cafés, nas cervejarias, nos passeios públicos, o que até então era apanágio exclusivo dos homens e de algumas poucas mulheres.”

ROSSIO ERA CONHECIDO POR ‘BOMPERNASSE’

À pastelaria “Suíça”, no Rossio, já chamavam o ‘Bompernasse’, [numa alusão às pernas das mulheres que passeavam pela zona parisiense de Montparnasse]”, porque por ali “predominavam as mulheres (...) fumando em público
Também a escritora e jornalista francesa Suzanne Chantal − que mais tarde se casaria com um português − escreveria em 1940 no “Diário de Notícias”, que “nunca tinha visto tantos homens juntos ao mesmo tempo numa praça pública e nem uma única mulher” e que compreendia a “razão por que Portugal” tinha “um nome masculino”. No seu romance “Deus não Dorme”, Chantal descreve o escândalo que os hábitos das estrangeiras provocaram entre algumas portuguesas que, por vezes, mostravam incompreensão pela situação dos refugiados: “Querem que a gente tenha pena deles. Passam ali os dias inteiros sem fazer nada. Estas estrangeiras! (...) Passeiam-se sem meias, sem chapéu. Trazem bâton nos lábios e não têm camisa. Uma vergonha! Um mau exemplo para as nossas filhas”.
Banhistas numa praia da linha do Estoril
Banhistas numa praia da linha do Estoril
FOTO ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL DE CASCAIS - COLEÇÃO HOTEL PALÁCIO
No que toca às sanções aplicadas às pessoas que desafiaram a lei dos fatos de banho, pouco depois de entrar em vigor, o matutino “O Século” de 13 de outubro de 1941 noticia que seriam julgados nesse dia na polícia marítima “alguns banhistas, principalmente senhoras, que transgrediram o regulamento” e que tinham sido “autuados” na véspera nas praias dos arredores de Lisboa.

SE FOSSE HOJE... MULTA ULTRAPASSAVA OS 2000 EUROS

No livro “Judeus em Portugal”, a historiadora Irene Pimentel conta que um diplomata jugoslavo “foi abordado por dois polícias à civil, por estar em tronco nu, na areia, e intimado a ir à polícia, no Terreiro do Paço, para ser multado em 3000$00, por ofensa ao regulamento do vestuário para banhos de mar. Acabou por ser perdoado, mas aconselhado a vestir-se ‘sobretudo quando saísse da água’ ”. O Expresso fez as contas e concluiu que 3000$00 em 1941 equivalem a 2028 euros atuais.
Refira-se ainda, a título de curiosidade, que de acordo com a informação disponível no Diário da República, o decreto-lei de 1941 não foi alterado nem revogado. Interpelada a Autoridade Marítima Nacional, informa que “se ainda não foi revogado expressamente, pode-se considerar a sua revogação tácita, atendendo ao facto de hoje, pelo menos em Portugal, as pessoas trajarem biquínis ou fatos de banho, ou calções de banho, uns mais curtos, outros mais longos (para os nudistas existem praias especificas), sendo que não existe qualquer punição pelo facto de se usar biquínis reduzidos, ou fazer-se topless”.
O Estado Novo sempre tentou controlar a exposição do corpo, nomeadamente nos cartazes de cinema, que “pintavam as costas” desnudas das atrizes de Hollywood, e “retocavam os decotes”, como lembra o historiador António Costa Pinto: “Se há algo que caracteriza o regime de Salazar é ter regulamentado e aplicado as visões mais conservadoras da igreja católica sobre a moral e os bons costumes”.
Acresce dizer, que os refugiados que passaram por Portugal só passavam dias inteiros sem aparentemente fazerem nada porque estavam praticamente impedidos de trabalhar, e limitados no espaço geográfico em que se podiam movimentar. Na verdade, não eram turistas mas pessoas em fuga em busca de um porto seguro que os salvasse da guerra e perseguições nazis.

ESTE TEXTO FOI INICIALMENTE PUBLICADO NO DIA 31 DE AGOSTO DE 2016.

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