sexta-feira, 8 de maio de 2020

A língua portuguesa, o Rui Tavares e o Nuno Melo



Então, a língua portuguesa. Mas o Dia Mundial da Língua Portuguesa foi ontem. Exatamente, o dia mundial da língua portuguesa foi ontem e há muito tempo: poucas línguas foram ontem, mundiais e há tanto tempo. Por isso falo hoje que ela tem amanhã. O português chegado a Malaca há meio milénio, com Afonso de Albuquerque, já foi dado como morto. E, se calhar, hoje já está mais para lá do que para cá, mesmo entre os cristangs, descendentes dos portugueses. Mas não se pode dizer morta uma língua que, porque já não tem amarras com o português fundador, olha para um avião e lhe inventa um nome: "barco que voa".
Gosto tanto da minha língua. Um dia, num aeroporto militar, eu ia partir para reportar a entrega de sacos de farinha a uma cidade cercada pela guerra civil angolana. Sentada no chão e encostada a uma parede, estava uma mãe jovem, a quem se agarravam dois garotos. Ao seu lado, também, um saco de lona com alguma roupa indiciava que ela, de onde vinha, tinha saído à pressa, e os seus olhos diziam que não escolhera para onde ia. Estaquei, fingindo espreitar a pista, para ouvir o que ela cantava, baixinho. "Atirei o pau ao gato, mas o gatu, não morreu..." Fiquei até ao fim da litania, comigo (um migo antigo) e os meus companheiros de língua.
Anos depois, desatou praí uma indignação contra a crueldade daquela canção. E eu que a sabia tão doce, tão cuidada, expondo a diferença entre o primeiro gato e o segundo, que é gatu, tal como a minha mãe do Porto a cantou na minha infância em Luanda, eu a cantei à minha filha, em Benfica, e aquela mulher, talvez de Maquela do Zombo, a cantava aos seus meninos não sabendo para onde iam. Gato, gatu. Língua de gato. O gato comeu-te a língua? Língua minha.
Então, a língua portuguesa. Lembram-se da brincadeirinha do início da crónica? Aquela da língua de ontem, de que hoje falo e prometo um longo amanhã? Língua de segunda, a da minha crónica. Copiadinha de uma magnífica língua de todos os dias. A avô, Vavó Xixi, do musseque vizinho do meu bairro, perguntou ao seu neto Zeca, um dia, e Luandino Vieira ouviu. "Olha só, Zeca! O menino gosta de peixe d'ontem?"
O rapaz não comia há muito tempo, ou comia, mas raízes de dálias arrancadas dos canteiros, a fazer de conta que era mandioca. "Ai, vavó, diz já, então! A lombriga está me chatear outra vez. Diz vavó. Está onde então, peixe d'ontem?" E a avó: "Se gosta peixe d'ontem, deixa dinheiro hoje, para lhe encontrar amanhã". Está escrito no livro Luuanda e o autor estava preso no Tarrafal quando ganhou o prémio da Sociedade Portuguesa de Escritores por essa obra maior da minha língua. Luandino Vieira ficaria preso oito anos preso no Tarrafal.
Quando do prémio, profissionais da minha língua escreveram um despacho de agência noticiosa dizendo: "Um dos premiados foi terrorista em Angola e está a cumprir pena pelos seus crimes. Luandino Vieira, pseudónimo de José Vieira Mateus da Graça, foi condenado a 22 de Junho de 1963, num tribunal de Luanda, a catorze anos de prisão, por crimes de terrorismo praticados na província de Angola. Certamente a Sociedade Portuguesa de Escritores concedera o prémio em virtude de não conhecer a verdadeira identidade daquele indivíduo acusado e condenado por crimes tão repugnantes." (ANI, Agência Nacional de Informação, 1965).
Na minha língua nunca foi feito prova de terrorismo, de crime repugnante ou duma bofetada que fosse, contra Luandino Vieira, com esse pseudónimo ou nome de batismo. Se Amália cantava "Ó rua do Capelão, juncada de rosmaninho", sim, ele era capaz de mudar o nome da Lavandula stoechas e escrever "arroz maninho". Juncada de arroz maninho, arroz pequenino, deitado para o chão nos dias de procissão a sair da igreja do Carmo... Rosmaninho não há em Angola e para Luandino, aí ele era terrível, a minha língua era, é e será a língua de Angola. E aí eu olho-o fascinado desde que o leio.
Mas percebam a minha língua, ela é feita para fadistas de terras onde há plantas mediterrânicas e é feita para escritores de cidades de terra vermelha e sem alfazema. A minha língua é imensa. A minha língua é feita para historiadores como Rui Tavares, culto e inteligente, capaz de sair das fotografias da Exposição do Mundo Português, de 1940. E dar-nos uma aula sobre o sentido histórico, simbólico e manipulador de um país sem liberdade e, no entanto, então com a colaboração de grandes artistas, de Leitão de Barros a Almada Negreiros. Isso tudo explicadinho, em cinco minutos, e numa língua para um país de 2020, moderno.
E a minha língua é também o eurodeputado Nuno Melo a falar dos bem pensados e bem explicados cinco minutos de Rui Tavares, assim: "Entre tantos, Rui Tavares foi escolhido para a tele-escola, destilando ideologia e transformando alunos em cobaias do socialismo. Nem disfarçam. Uma aviltante e ignóbil revolução cultural em marcha que pais sem recursos não podem evitar. Política travestida de educação. Miséria."
Reparem, em 1965, Nuno Melo talvez quisesse, como os propagandistas da ANI, o Rui Tavares no Tarrafal. Em 2020, Nuno Melo já aceita que Rui Tavares só seja impedido de se expressar. A minha língua amacia com o passar do tempo.

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