terça-feira, 28 de abril de 2020

Um aumento anormal de mortes em Portugal que a covid-19 não explica: “Poderá haver várias explicações”, diz ao Expresso coautor do estudo

António Vaz Carneiro

Entre março e abril, houve no país cinco vezes mais óbitos do que os atribuíveis ao coronavírus e muitos mais do que o esperado. A razão é analisada num estudo divulgado esta terça-feira pela revista científica da Ordem dos Médicos. E pode indicar até que ponto, durante o combate à pandemia, as outras patologias ficaram arredadas do Serviço Nacional de Saúde

Em março e abril, a mortalidade em Portugal foi muito mais elevada do que o esperado — e a ‘culpada’ não é apenas a pandemia, segundo um estudo divulgado esta terça-feira na revista científica da Ordem dos Médicos, a "Acta Médica Portuguesa". De acordo com a investigação, há um aumento anormal de mortes que a covid-19 não explica: entre 1 de março e 22 de abril, período em que morreram 785 pessoas devido ao coronavírus, verificaram-se outros 2600 a 4000 óbitos a mais do que seria expectável.
Este número, que é cinco vezes superior ao da mortalidade atribuída à covid-19 e ultrapassa largamente o dos anos anteriores, pode demonstrar até que ponto, enquanto o SNS se preparava para combater a pandemia, outras patologias ficaram arredadas.
António Vaz Carneiro, especialista em medicina interna e presidente do conselho científico do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência, é um dos autores do estudo. E falou ao Expresso.
O estudo hoje publicado aponta para um aumento significativo da mortalidade nos doentes não-Covid. Como é que isto se explica?
O que foi identificado foi um excesso de mortalidade de 1 de março a 22 de abril. Isto é, estas mortes são para além das mortes habituais em Portugal por todas as causas — mais ou menos 300 por dia. Poderá haver várias explicações para estes dados: em primeiro lugar, dado que o mês de fevereiro teve uma taxa de mortalidade mais baixa do que o habitual, graças ao bom tempo e a temperaturas razoáveis, as mortes que deveriam ter acontecido neste período acabariam por acontecer em março. E, mesmo que fosse assim, o número total deveria ser pequeno. Em segundo lugar, podem ter sido doentes Covid-19 não identificados — o que é pouco provável, já que os doentes Covid-19 que morrem têm quadros clínicos exuberantes e são testados e identificados atempadamente. A causa que achamos mais plausível é ter sido uma baixa importante de acesso aos cuidados de saúde: doentes com quadros agudos e crónicos agudizados. Suportando estas hipóteses estão as circunstâncias de os doentes mais novos, com menos de 55 anos, não terem tido aumento da sua mortalidade, e de se ter verificado uma baixa efetiva de exames auxiliares de diagnóstico e de consultas.
Depreende-se que as pessoas possam ter ficado com medo de ir aos hospitais. Como é que isso se combate?
Com informação correta, objetiva e compreensível, de modo a que as pessoas, por exemplo, saibam que nos hospitais há circuitos de circulação diferentes entre os doentes Covid-19 e todos os outros e que este vírus só é perigoso para um número relativamente pequeno de pessoas.
Como médico, que tipo de patologias pensa que estão associadas a este aumento de mortalidade?
Não examinámos em detalhe os dados das patologias potencialmente responsáveis pelos óbitos, mas acreditamos terem sido devidos às doenças mais prevalentes: cardiovasculares, cancros, etc.
Quais os parâmetros e os critérios comparativos utilizados no estudo?
Utilizámos as bases de dados públicas disponíveis para análise de mortalidades Covid e não-Covid. A nossa metodologia assumiu que os meses a seguir seriam os mais corretos para definir as linhas de base comparativas, devido a serem meses de verão, com características mais semelhantes às do atual confinamento, e de menor mortalidade global. Obtivemos também os dados das visitas aos serviços de urgência de todo o país durante esse período. Com esta metodologia, estimamos que possam ter morrido durante aquelas sete semanas entre 2400 e 4000 pessoas a mais, com 4 a 5 vezes mais doentes não-Covid do que Covid. Alertamos que há alguma incerteza nos dados que utilizámos, como sempre acontece quando queremos analisar um fenómeno tão dinâmico como esta pandemia. Mas há dados que confirmam a nossa análise. Por exemplo uma ausência de excesso de mortalidade em doentes com menos de 55 anos. São, portanto, os doentes mais vulneráveis — mais idosos e com mais doenças — que são mais atingidos e, neste estudo, 4 ou 5 vezes mais do que os que têm Covid-19.
Há algum grupo etário e alguma região em que este excesso de mortalidade se verifique com mais força?
Os grupos etários mais atingidos são os doentes acima de 75 anos e especialmente acima de 80 anos e com várias doenças. Abaixo de 55 anos, a mortalidade é muito modesta. Os distritos onde se verificou um maior excesso de mortalidade foram os mais densamente povoados e com mais casos Covid-19: Lisboa, Porto e Aveiro.
O SNS pode estar a deixar para trás os doentes com outras patologias, sem ser Covid?
Devido à necessidade de enfrentar uma pandemia cujo impacto era inicialmente desconhecido, fizeram grandes alterações na maneira de funcionar do SNS. Foram implementadas alterações substantivas na organização das unidades de saúde e, em muitos casos, encerramento de consultas, exames de imagem, laboratórios, etc. Esta realidade fez com que uma percentagem significativa de doentes deixasse de ter acesso a cuidados de saúde. Uma outra razão será o receio de as pessoas contraírem o vírus no nosso SNS, evitando ir às urgências, por exemplo, mesmo quando estão gravemente doentes.
Este coronavírus veio para ficar. Como é que o SNS deve reorganizar-se no futuro para reverter esta situação e abranger todos os doentes?
Este vírus irá voltar em ondas todos os anos, tais como os vírus da gripe A, das aves, suína, etc. Se for — como parece ser — algo sazonal, então teremos de viver com ele nos períodos futuros do outono e inverno. Quisemos olhar para este fenómeno de modo diferente e dar o nosso contributo, para que as alterações necessárias venham a ser feitas, tanto a nível de organização quanto de informação, e ninguém fique arredado dos cuidados médicos de que necessita.

expresso.pt

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