segunda-feira, 27 de abril de 2020

O pesado verbo da ignorância




Um homem louco dita regras na televisão. E uma turba obediente e insana grita palavras de ordem. Me faz lembrar Bauhaus tomada, me faz lembrar Roma sob as chamas ou a República de Salò, onde morei por alguns meses, com seus jardins assustadoramente simétricos e suas organizadíssimas construções. 
A turba furiosa me lembra os anos sessenta, os cassetetes dos soldados na cabeça dos estudantes, os ratos invadindo o corpo das mulheres, a tortura constitucionalizada, aquele delegado do DOPS fumando um cigarro e decidindo o destino de rapazes imberbes, escolhendo qual mãe iria chorar de desespero aquela noite.

Me pergunto que filme é esse que não param de rebobinar. Se somos mesmo essa reedição grotesca onde fanáticos por sangue e ordem fundam clubes. Clubes disfarçados de igrejas. A Igreja Universal, o Reino de… É tudo tão grandioso. O homem louco quer ir longe. 
O homem na tv, com sua cabeça de leão vaidoso, esbraveja e diz absurdos, e a turba ri. Ri, aplaude. Nem sabe que morre a cada aplauso, nem sabe que mata em si o amor próprio e mata no outro qualquer possibilidade de democracia, mas ri e aplaude. Nossos heróis foram mortos e tantos outros suicidaram-se de corrupção. Não há ninguém além do homem na tv, que enterra corpos na surdina, que leva sua voz até os microfones das igrejas, que faz do seu plenário um templo, que vende fé aos miseráveis, coisa pouca e mínima, mas essencial a sanidade da alma.

O homem que vende antídotos e milagres me assusta, decerto. Mas o que assusta mais é a turba cega, surda, sedenta. Nero, Mussolini e Hitler sem essa multidão guiada, não seriam nada mais que homens. Homens bem frágeis até. 

Com seus problemas de auto estima, com seus traumas de infância, seus Complexos de Édipo, suas dificuldades de ereção. Esses homens, com suas genitálias sutis carregando enormes fuzis para disfarçarem o medo do ridículo seriam personagens mambembes, caricaturas. 
Riríamos deles, lhes atiraríamos tomates não fosse a turba que projeta e vê com tanta definição nessas criaturas, a sua própria loucura.

Seria fácil cuidar do homem na tv. Encontrar-lhe um hospício decente ou um circo para que ele se apresentasse e fosse feliz. Mas uma turba não se gerência assim tão fácil. Ela se esconde atrás do rosto plácido do leiteiro, do olhar paciente do taxista, do ar gentil do banqueiro, da bondosa senhora que alimenta os pássaros na praça, mas que sangraria um ser humano pela garganta caso esse ameaçasse a gorda pensão de seu falecido marido militar. 

A turba enlouquecida está nas retinas do pastor milionário, mora entre os lábios do senador vendido, se aloja nas pastas dos jovens deputados que ainda titubeiam o passo.

A turba insana está dentro de casa, no discurso católico-purista da mãe, nos comentários machistas do pai, na mão do rapaz que se levanta contra a namorada e que a mata se for preciso, caso seja contrariado. 

A turba enlouquecida está por toda parte, tão disponível e de fácil acesso quanto o sonho da padaria, quanto o pão que sai do forno todos os dias.

A turba enlouquecida, essa que elege ditadores e que para eles levantam estátuas, que os chamam de messias e mito, e que diz em alto e bom som que os fins justificam os meios ao ouvir do homem na tv que ladrão bom é ladrão morto, somos nós…


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