segunda-feira, 27 de abril de 2020

ESPECIAL - Lares de idosos: há utentes “a desistir da vida” e funcionários marginalizados por colegas e familiares .





REPORTAGEM CORONAVÍRUS - Lares de idosos: há utentes “a desistir da vida” e funcionários marginalizados por colegas e familiares . Natália Faria (Texto) e Paulo Pimenta (Fotografia) 27 de Abril de 2020, 6:39
O custo da pandemia nos lares de idosos vai muito para além das mortes por covid-19. Há demências a agravarem-se, declínios cognitivos e utentes que, sentindo-se abandonados pelos familiares, desistem de viver. Os funcionários que cuidam dos infectados contam a medo que os restantes colegas passaram a evitá-los. Nalguns casos, a própria família fechou-lhes as portas.





A gata amarela que se passeia pelos corredores do Lar Dra. Leonor Beleza, em Santo Tirso, é hoje o único resquício de normalidade na instituição. “Tudo o que contribuía para um ambiente familiar e de casa desapareceu: o lar tornou-se frio e distante”, lamenta Ana Luísa Carvalho, coordenadora desta estrutura criada em 1986 pela Santa Casa da Misericórdia, para acolher utentes com grandes dependências. 

Aos estragos causados pelo novo coronavírus (que infectou 28 funcionários e 44 utentes, dos quais sete morreram), soma-se a preocupação pela deterioração mental e cognitiva dos que recuperaram ou que nem chegaram a ser infectados. “O declínio é evidente. Há utentes que deixaram de permitir a colocação de próteses dentárias, porque deixaram de reconhecer os funcionários, outros que deixaram de se alimentar e aos quais tivemos que colocar sondas. Faltam-lhes as rotinas, as visitas dos familiares e muitas das actividades que promovíamos para os estimular”, resume.
Mal escondidas pela máscara, as olheiras em torno dos olhos de Ana Luísa acusam muito cansaço. Esta psicóloga está a trabalhar 12 a 16 horas por dia, desde que, no dia 16 de Março, foi detectado o primeiro caso de contágio num dos colaboradores da instituição. “Tomámos cedo a decisão de não retirar nenhum utente daqui. São pessoas muito frágeis, alguns dos quais só com a deslocação teriam falecido”, explica. 
Mas, com uma equipa drasticamente reduzida, foi difícil garantir os cuidados necessários aos utentes. Entre a coordenação geral dos trabalhos, a procura por máscaras, testes, viseiras e batas que não se encontravam no mercado, o atendimento telefónico dos familiares que começaram a ligar aflitos, Ana Luísa deu por si a dar banho e comida aos utentes, a mudar-lhes fraldas.




De uma hora para a outra, o lar fechou-se sobre si próprio, sem que do lado de lá da Linha SNS alguma voz se prontificasse a ajudar. “O primeiro doente suspeito esteve sete dias à espera de ser testado”, recorda. 
E garante que, sem os pequenos gestos heróicos dos funcionários do lar, “sem a parte humana que os levou a dedicarem-se aos utentes, muitos mais teriam morrido”. É uma ideia que há-de repetir variadas vezes, sublinhando que, num corpo de 67 funcionários com uma média de idades perto dos 60 anos, e entre os quais abundavam os motivos para se resguardarem em casa (por serem imunodepressivos, terem familiares doentes ou pais idosos, por exemplo), “todos quiseram ajudar”. “Aliás, entre os 28 que acabaram por ficar infectados, muitos queriam continuar aqui. 
Tivemos que lhes explicar que, em termos éticos, isso não era possível.”
Ana Luísa Carvalho, psicóloga e coordenadora do Lar drª Leonor Beleza, onde, num universo de 93 utentes, 44 foram infectados
Ana Luísa deixou de ver a filha, para acautelar o risco de contágio. Mas, durante esta pausa que faz no seu gabinete, lembra que a batalha que estão a travar vai muito para além do combate ao contágio. E é uma batalha que está, em grande parte, perdida. “Estamos a conseguir salvar as pessoas e a protegê-las em termos de saúde, mas elas nunca mais vão ser o que eram. Temos demências que se estão a agravar imenso”, nota.
A factura da covid-19 já vai muito acima dos sete utentes que morreram com a doença. “Termos perdido sete pessoas, neste universo total de 93 utentes, é uma vitória, mas sinto que vamos perder muitos mais porque estamos a vê-los todos os dias a desistir da vida.”


A gata "Beleza" foi a única referência dos utentes que se manteve inalteradaSalvar estes doentes, maioritariamente idosos, do contágio implica expô-los a muitos outros perigos não tão evidentes mas cujos efeitos são igualmente letais: “Muitos sentem que a família os abandonou, por mais que tentemos explicar-lhes o que se passa lá fora. Mas eles não vêem as lojas fechadas, as ruas vazias. E o facto de terem deixado de reconhecer as funcionárias, por causa das máscaras, das batas e das viseiras, ou simplesmente por terem tido que mudar de quarto, desorganiza-os.”
E porque alguns dos utentes “só reagem à gata”, que é o único ser vivo que se passeia pelo lar dispensando máscara e viseira, os funcionários incluíram no seu rol de tarefas desinfectar-lhe as patas sempre que a vêem. 
É que a gata tornou-se exímia em contornar as toalhas embebidas em desinfectante que foram colocadas no chão, à entrada de cada divisória. Como todas as portas foram abertas, para minimizar o risco de contágio por via do toque nas maçanetas, Beleza – assim se chama a gata - sobe e desce os pisos, sem distinguir entre os que acolhem infectados e os restantes.





Medo e portas fechadas
As autoridades sanitárias acordaram tarde para a realidade dos lares de idosos ou dependentes. A directora-geral de Saúde, Graça Freitas, revelou, quinta-feira, que das 820 mortes registadas até àquele dia, 327 foram de utentes de lares. São quase 40%, numa proporção que, de resto, é ainda maior noutros países. E, neste lar, parece confirmar-se aquilo que a União das Misericórdias Portuguesas e a Confederação Nacional das Instituições Particulares de Solidariedade Social vêm repetindo: a situação dos lares foi inicialmente descurada, nomeadamente pelo Ministério da Saúde (MS) que focou os esforços nos hospitais. Só no sábado é que o MS publicou um despacho que prevê que o acompanhamento clínico dos utentes dos lares passe a ser feito pelos médicos e enfermeiros dos centros de saúde.
No início da pandemia, quando os funcionários deste lar suspeitaram do primeiro caso de contágio num dos utentes, na Linha SNS 24 recusaram prescrever o teste. “Ele tinha períodos de febre e tosse e foi imediatamente isolado. Mas só ao fim de sete dias conseguimos fazer nós o teste, a expensas próprias, porque sabíamos que não podíamos continuar à espera do SNS numa estrutura que era um rastilho para a doença”, recua outra psicóloga da instituição, Sara Almeida e Sousa, recordando os “dias tenebrosos” em que havia 93 utentes vulneráveis para proteger e “não havia testes nem máscaras nem viseiras nem gel desinfectante que se pudessem comprar nem um delegado de saúde” que se disponibilizasse a ir ao local.




Quando a Santa Casa da Misericórdia de Santo Tirso conseguiu, finalmente, arranjar no mercado os testes para fazer a despistagem, a expensas próprias, constatou que havia os referidos 44 utentes e 28 colaboradores infectados. Por essa altura, em obediência ao respectivo plano de contingência, já os familiares dos utentes estavam impedidos de entrar. Para colmatar as falhas de pessoal, as equipas passaram a fazer turnos de 12 horas. 
“No início, houve pessoas com vinte e tal anos de experiência a entrar em pânico e a fugir. Peguei em quatro das funcionárias mais antigas e mais experientes, que já tinham tratado doentes com sida, e disse-lhes ‘Alguém vai ter de continuar aqui’. Chorámos todos, mas era preciso reagir”.
E reagiram. Os utentes infectados foram transferidos para o piso superior, os elevadores desligados. 
A passagem de turno passou a ser feita por telefone e com recurso ao livro de ocorrências. O telefone do lar tocava ininterruptamente sem que ninguém o atendesse porque a prioridade era outra. “Cheguei a estar até às duas da manhã a devolver chamadas de familiares. A primeira coisa que lhes dizia era ‘Respire fundo’ porque já sabia que aquele filho ou marido ou irmão tinha estado dois ou três dias a tentar telefonar”, recorda a coordenadora.
Aos funcionários que ficaram e àqueles que vieram de outras valências da Santa Casa foi pedido que lavassem a bata todos os dias em casa a 60 graus. À entrada, passaram a tomar banho e a medir a temperatura, num procedimento que se repete várias vezes ao dia. Vencido o medo, tiveram de superar o desconforto de terem de alimentar e lavar idosos tolhidos por máscaras, viseiras, protectores de cabeça e batas descartáveis em cima da bata normal.
Mas o pior nem foi isso. O pior foi que, nas ruas da cidade, dentro do próprio lar e até das respectivas famílias, muitos destes funcionários começaram a ser encarados como leprosos. “Uma das funcionárias, que mandei para casa por ter estado em contacto com alguém positivo, veio para trás a chorar porque o marido e a filha não a deixaram entrar em casa”, recorda Ana Luísa Carvalho. “Quando tentámos telefonar-lhes, a filha tinha desligado o telefone. E o marido alegou que, se ela tinha sido contagiada aqui, tínhamos de lhe arranjar um quarto para ela dormir”.
Quando recebeu o segundo teste negativo, a ajudante de lar Adelaide Babo, 44 anos, apressou-se a regressar aos "seus" utentes
Vestiários esvaziam-se quando chegam “os dos infectados”
Noutro caso, um marido passou a recusar a comida que a mulher fazia em casa com medo de ser contagiado. “E houve ainda uma colaboradora que veio pedir-nos que falássemos com a filha porque, caso contrário, ela nunca a deixaria utilizar a casa de banho”, prossegue a psicóloga. “Todos os funcionários foram marginalizados. O isolamento que sentimos, para além de tudo o que estávamos a viver dentro do lar, foi uma coisa inimaginável.” E ainda é. A estigmatização começa, aliás, dentro do próprio lar. “Os colegas dos outros pisos, se nos virem chegar aos vestiários, desaparecem logo ou não chegam a entrar”, confirma Adelaide Babo, uma ajudante de lar com 44 anos que foi contagiada e que, entretanto, já pôde regressar ao trabalho, precisamente “no piso dos infectados”.
No corredor da ala masculina, Adelaide conta que a única dificuldade respiratória que sentiu foi quando o teste de despistagem deu positivo. “Fiquei aflita, não por mim, mas pela minha família e pelos utentes. Gosto muito deles.” A máscara e a viseira que lhe escondem o rosto deixam perceber o sorriso quando confessa que a primeira pessoa a quem ligou a contar que o segundo teste dera negativo foi à coordenadora do lar. “Nem esperei para contar ao meu marido. Queria era voltar a trabalhar”.
Rosa Costa, ajudante de lar, 62 anos, ainda não se habituou a ver vazia a cama da "sua utente".
E ainda hoje, tantos dias passados a trabalhar entre idosos infectados, acontece-lhe pôr-se a chorar. “Fico sempre admirada e contente ao ver como eles estão a ficar melhor. No primeiro dia do regresso ao trabalho, voltei toda contente para casa porque a dona Célia conseguiu segurar-se muito bem sozinha no banho. Para a idade que têm, os heróis são eles”, assegura.
“É urgente pensarmos em novos tipos de alojamento colectivo”
Há várias lições a tirar da forma como a covid-19 tem feito vítimas dentro dos lares de idosos, alerta o provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, António Tavares. Quando a poeira desta pandemia assentar – acrescenta -, uma das prioridades deverá ser criar na orgânica governamental uma estrutura dedicada a encarar de frente a forma como se envelhece em Portugal. “Tal como existe uma secretaria de Estado para a Juventude, terá de existir uma para os idosos”, exorta este responsável, para sustentar que, num país em acelerado processo de envelhecimento demográfico, “é urgente começar a pensar em novos tipos de alojamento colectivo”.
“Não é possível continuarmos a ter lares para oitenta pessoas ou mais. E também não é possível continuarmos a ignorar a quantidade de lares clandestinos que temos no país e onde vemos idosos depositados na cave ou na garagem”, constata o provedor, desafiando a sociedade a dar “um grito de cidadania” e a exigir investimentos sérios em soluções residenciais mais próximas do modelo de co-housing. “Cada pessoa tem direito a um quarto e a uma sala e pode partilhar os serviços comuns, de convívio, restauração e lavandaria”, exemplifica, dizendo-se convicto de que esta exigência se imporá também porque o perfil dos idosos está em clara mudança. “Estão a tornar-se muito mais exigentes do ponto de vista cultural”, sublinha, aproveitando para apontar “o subfinanciamento crónico deste sector” e as responsabilidades partilhadas “por todos os partidos que só se aproximam dos lares na proximidade de eleições”.
Na ala feminina do mesmo “piso de infectados”, Rosa Costa, 62 anos, que também já se habitou a ver o vestiário esvaziar-se como que por magia quando chega a sua vez de se preparar para regressar a casa, garante que o que lhe dói é olhar para a cama deixada vaga pela utente a que se tinha habituado a chamar sua. “Quem, como eu, trabalha aqui há trinta anos cria uma família cá dentro. E há alguns a que nos apegamos mais”, desculpa-se.
Vale-lhe a constatação de que, na sua maioria, os infectados estão a recuperar. Cinco deles, aliás, já voltaram ao “piso normal”. Deverá ser em breve o caso da utente que vemos sentada a uma mesa, muito compenetrada, de rádio e auscultadores na cabeça. “Foi uma das que foi para o hospital e que julgávamos que não conseguiria dar a volta. Tem 91 anos. Mas, como vê, está óptima. E voltou a ouvir a música de que gosta”, alegra-se.




No corredor, Phil Collins canta Take a look at me now. Mesmo sabendo que o que a esperava eram lágrimas Augusta Silva, outra “ajudante de lar” que, aos 61 anos, tinha já “metido os papéis” para a reforma, antecipou o regresso de férias ao trabalho quando a pandemia começou a somar vítimas dentro do lar. “Não vou esconder que me assustava isto tudo, até porque tenho uma filha com paralisia cerebral e um marido com diabetes”, reconhece. Mas deu a volta ao medo. Agora, não entra em casa sem primeiro tomar banho num wc exterior e vestir um pijama lavado. Passou a comer sozinha. Nas folgas, senta-se com a família, mas numa ponta afastada da mesa. “Também não ando muito chegada ao homem”, brinca, preparando-se para retomar a distribuição das refeições pelos quartos.
Maria de Fátima, que a esta hora está já a limpar a copa do lar, passou a dormir na sala. Com 54 anos e um marido diabético, trabalhava num infantário da Santa Casa da Misericórdia que entretanto recorreu ao lay off. Quando foi requisitada para o lar, chorou o dia todo. “Vir das crianças para aqui foi uma mudança radical”, justifica-se.
Transferida de um infantário para o lar, Maria de Fátima, 59 anos, sente agora que está onde é mais precisa.
“Num dos dias, o nervoso era tanto que não parou de sangrar do nariz”, recorda a coordenadora. A agora “ajudante de lar” não nega. Mas garante que, ao fim dos primeiros dias “a fazer tudo o que viesse à rede”, se apercebeu da importância de estar ali. “Os idosos precisam de nós. Precisam de nós para sobreviver. 
E quando chegar a nossa vez como vai ser?”.



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