terça-feira, 31 de março de 2020

Vírus deixa artistas algarvios sem palco e sem trabalho



As concentrações são o inimigo público número 1 neste momento de luta contra o vírus. E o mundo da cultura e do espetáculo foi o primeiro a cancelar eventos. Milhares em todo o País. Centenas no Algarve. Ser agente cultural, ser artista, é por estes dias estancar o contacto com o indispensável destinatário do trabalho, o público. Mas no mundo real, como sobrevivem os artistas sem aplausos, forçados a ficar em casa. Ao JA, artistas algarvios da música, dança e teatro relatam as dificuldades por que passam nestes dias de aperto
Miguel Correia é conhecido no mundo do djing [área de trabalho dos DJ’s] como Deelight, desde 1998. Natural de Portimão, está a viver o surto do covid-19 à porta de casa, uma vez que vive a cerca de 100 metros de uma das escolas encerradas e que teve infeção confirmada numa professora.
A sua profissão, de reproduzir música e oferecer um espetáculo aos amantes da noite, está suspensa por tempo indeterminado devido ao cancelamento e adiamento de todos os eventos a nível nacional, à ordem de encerramento das discotecas e similares e à obrigação dos bares encerrarem às 21h00, medidas implementadas pelo Governo para combater a evolução do surto.
Deelight
Sem pistas de dança não há DJ’s
“Tenho contas para pagar e bocas para alimentar”, confessa Deelight ao JA. Os prejuízos para o artista são de 100% e o que a maioria dos promotores fará é “reagendar futuramente o que agora foi cancelado. Mas isso traduz-se à mesma numa perda. Se não trabalhas este sábado, não ganhas… Mesmo que faça o gig [espetáculo] numa data mais para a frente, já perdi a noite que foi cancelada para esse ou outro cliente”.
O mês de abril estava “bem preenchido” na agenda de espetáculos de Deelight, com as férias da Páscoa no Algarve e as viagens de finalistas no sul de Espanha.
O DJ e produtor de música eletrónica considera que deveria haver um bom apoio do Governo, mas acha que “o Estado considera a nossa arte como marginal. Para o Estado só as artes clássicas é que são dignas de apoio. Ou seja, só as que não são continuadamente autosustentáveis é que o Estado sustenta”.
Na indústria da música de dança, ser DJ não é fácil, pois “muitos têm de trabalhar durante o dia para se sustentarem, para conseguirem continuar a fazer música e a apresentar-se ao vivo” à noite, salienta Miguel Correia ao JA.
“Se fores uma Companhia de bailado ou de Teatro, vives à custa do Estado. Isto está mal desde a nascença”, alerta o DJ algarvio, que dá o exemplo da Holanda, onde é dada muita importância e apoio por parte do Governo à música eletrónica, com artistas como Hardwell e Martin Garrix, dois dos maiores DJs e produtores a nível mundial, a receberem apoios públicos.
“Só nos preocupamos em preservar o clássico, em detrimento do atual. Mas a verdade é que daqui a 200 anos arriscamo-nos a não ter espólio cultural desta época”, salienta Deelight ao JA.
Com o verão à vista, época alta no Algarve e com a reabertura de muitos espaços de diversão noturna sazonais, Miguel tem medo que “haja um receio nas marcações por parte dos clientes” até que o surto do vírus covid-19 tenha passado e as discotecas possam reabrir, uma vez que os meses de maio e junho também já estão praticamente preenchidos na sua agenda.
Entretanto, Deelight vai cumprir o seu dever como cidadão e isolar-se, em estúdio, de onde sairão novas produções musicais que apresentará nos próximos meses. Mas os adeptos de DJ sets não têm ficado sem música: durante o fim-de-semana, através de uma transmissão em direto no Facebook, Deelight ofereceu um set de eletrónica a todos os cidadãos que cumprem isolamento social aconselhado pelo Governo.
Pi Amaro
Situação “ingrata” preocupa bailarinos
Os bailarinos são outra das classes artísticas que já estão a sofrer consequências do surto do vírus covid-19. Pi Amaro, bailarina profissional que pertence à equipa das festas Revenge Of The 90s e da atual digressão do Deejay Télio, confessou ao JA que atualmente está sem trabalho, por tempo indeterminado.
“O que me assusta mais, nem é o facto de eu estar sem trabalho neste momento. É não saber quando é que posso vir voltar a ter emprego, porque as atuações estão todas a ser canceladas”, revelou a jovem de 29 anos, natural de Altura, concelho de Castro Marim.
Os próximos espetáculos onde iria atuar, as festas Revenge of The 90s em Faro e Guimarães e os concertos de Deejay Télio nas viagens de finalistas em Espanha foram adiados, tal como as aulas de dança que leciona em Lisboa.
Em relação às dificuldades que os artistas podem vir a passar, Pi afirmou ao JA que graças aos seus descontos de ordenado, pensa que terá direito a um subsídio de desemprego, mas já está a ver os colegar a “tremer as pernas” em relação a esta situação “ingrata”.
Em relação ao covid-19, a bailarina tem esperança que o surto passe rápidamente mas tem “um pressentimento um bocadinho mau” pois “parece que só agora é que a coisa está a evoluir e nós não estamos preparados minimamente para essa evolução que vai surgir, porque o nosso sistema de saúde tem grandes problemas”.
Na sua opinião, Pi acha que apesar de todos estes adiamentos de eventos, “sempre é melhor do que cancelar” definitivamente. No entanto, “ninguém está a dar datas para quando esses eventos voltarão a decorrer, porque também não sabem”.
Um dos problemas que salienta em relação ao adiamento e suspensão de eventos é que “quando começarem a reagendá-los, podem vir a ser marcados uns em cima dos outros e não vai dar para fazer tudo aquilo que poderia ser feito ao longo do ano” e é impossível estar em dois sítios ao mesmo tempo.
Na sua agenda de atuações, o mês de maio ainda não sofreu muitas alterações, com exceção das datas marcadas para o estrangeiro, e a bailarina pensa que os promotores “estão à espera de perceber se há necessidade de adiar mais eventos, pois todos perdem dinheiro”.
Pi Amaro considera que deveriam existir mais apoios do Ministério da Cultura e do Governo para os artistas, principalmente para os que trabalham em regime de freelancer, mas destaca que esta classe já está “tão calejada em relação a levar pontapés”, que acaba por deixar de acreditar neste tipo de iniciativas. “Era bom que se lembrassem de nós, pelo menos uma vez”, concluiu.
Evgeniy Belyaev
Belyaev sem palco para a sua companhia de dança
Evgeniy Belyaev é diretor artístico da Companhia de Dança do Algarve (CDA), que agora ficou sem palco para dançar.
“É uma situação que não depende de nós, não podemos fazer nada”, referiu o Belyaev ao JA, em relação a todos os adiamentos e cancelamentos de eventos devido ao surto de covid-19.
Com esperança, o diretor artístico de 58 anos afirmou que “os eventos vão continuar, quando as coisas melhorarem e acho que as coisas vão se resolver rapidamente”, considerando o surto como “controlado”.
“Se do outro lado do mundo conseguiram, vamos pensar positivo que vamos superar isto com uma vitória”, referiu o diretor artístico da CDA ao JA, salientando ainda que “os valores monetários não são maiores que o valor humano”.
O mais importante neste momento para Belyaev, é a necessidade de estarmos bem protegidos e de “compreender que precisamos de ter alguns cuidados”.
Para o diretor da companhia, que também sofreu com cancelamentos e adiamentos de eventos e concursos, é preferível “parar um pouco para depois realizar tudo, sem problemas”, apesar de algumas dificuldades financeiras que possam existir nesta área.
Viviane
Viviane e os músicos desprotegidos
Na área da música, a cantora algarvia Viviane viu um concerto solidário onde ia participar ser cancelado devido ao covid-19. Este vírus “vai ter consequências para todos, mas para os artistas não sei muito bem o que vai acontecer”, disse a vocalista dos Entre Aspas ao JA.
“Os meus colegas, um pouco por todo o lado, estão a receber cancelamentos de concertos. Não há depois uma forma de compensar o dinheiro perdido com isso”, referiu.
A artista confessou que os músicos, neste momento, sentem-se “desprotegidos sem saber o que vai acontecer, porque não se sabe quanto tempo vai prolongar” o estado de alerta implementado pelo Governo.
“Quando as pessoas entram numa sala, vêm um artista a cantar mas não sabem que há muita gente a trabalhar por trás”, desde técnicos de som, empresas de aparelhagem e todos aqueles que estão ligados a um espetáculo.
Segundo Viviane, toda a classe artística tem também de pagar a Segurança Social e maior parte trabalha de forma independente a recibos verdes, ou seja, “se não trabalharem, não ganham”.
As poucas respostas do Governo sobre apoios para este tipo de trabalhadores tem preocupado muito a classe artística, que, neste momento, “está sem saber o que vai acontecer”, revelou Viviane ao JA.
A cantora algarvia ainda tem concertos agendados para abril e espera que “a situação fique mais controlada, apesar da pandemia demorar ainda algum tempo, pois estamos à espera de um pico que ainda não aconteceu”.
Em relação ao vírus covid-19 que tem atingido todo o mundo, incluindo Portugal e a região do Algarve, Viviane considera que “é preciso estender o período de contenção” e que “é inevitável o contágio, mas o que interessa é estarmos unidos, cuidarmos uns dos outros e cumprir o que nos é pedido”.
Tendo a música como profissão principal e trabalhando na área há vários anos, Viviane confessa que “os músicos já estão habituados a períodos de espera”, como a sazonalidade do Algarve, e “esta situação tem de ser encarada como um período de dificuldades, mas com esperança de que possamos retomar a vida normalmente em breve”.
Ainda este mês, a cantora prepara o lançamento do primeiro single de apresentação do seu novo álbum, previsto para o dia 23 de março. “Já que não há espetáculos, concentro-me em estúdio”, revelou Viviane.
A nova faixa da Viviane pode ser uma boa solução para quem está de quarentena ou isolamento devido ao covid-19, uma vez que “as pessoas precisam de se distrair em casa e a música tem um grande papel nas pessoas, para passar o tempo”, concluiu.
Programação cultural de meses… cancelada em segundos
O Teatro das Figuras, em Faro, suspendeu toda a sua programação até ao dia 3 de abril e o diretor Gil Silva considera esta decisão difícil, mas necessária, e “má para todos os intervenientes, paralisando um setor”.
“Os artistas vivem da sua arte e quando ela não é sustentada, fica em causa e não é exibida”, mas neste caso, com estas condicionantes “tem de se aceitar”, confessou o diretor ao JA.
Em relação à programação, Gil Silva revelou que “todas as produtoras e artistas estão de pé atras e com receio, porque muitas delas são precárias e toda esta situação põe em perigo as próprias estruturas”.
No dia 3 de abril, o Teatro das Figuras fará uma nova avaliação e irão “tentar reagendar os espetáculos suspensos, para que depois possam ser apresentados”. Neste momento, o teatro encontra-se “à espera de confirmações para divulgar datas”, esperando tê-las definidas nesse dia.
Em relação aos bilhetes comprados pelo público para os espetáculos que foram adiados ou cancelados, “haverá o reembolso a quem quiser”, mas os mesmos estão válidos para as novas datas que serão divulgadas.
Apoio do Governo para recibos verdes é inferior ao salário mínimo
O Governo apresentou novas medidas implementadas aos trabalhadores de recibos verdes que estejam a sofrer uma grande redução da sua atividade, como os artistas.
O Governo pretende apoiar quem trabalha de forma independente, com recibos verdes, com um valor correspondente à remuneração registada como base de incidência contributiva, que terá um valor máximo de 438,81 euros.
Esta medida, que fica aquém dos 635 euros de salário mínimo atual e tem uma duração máxima de seis meses.
Para receber este apoio, os interessados têm de apresentar um requerimento, o seu trabalho tem de ser exclusivamente feito com recibos verdes, não podem ser pensionistas e têm de ter estado sujeitos ao cumprimento das obrigações contributivas à Segurança Social.
Gonçalo Dourado

jornaldoalgarve.pt


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