sexta-feira, 20 de março de 2020

José Goulão - O eclipse ameaçador da União Europeia

A pandemia do novo coronavírus, como nenhuma outra situação, expõe a União Europeia como uma entidade que não existe para servir as pessoas mas para servir-se delas em favor dos interesses de castas.
Trabalhadores dos cemitérios e das agências funerárias, com máscaras protectoras, durante o funeral de uma pessoa morta devido ao coronavírus COVID-19, em Bérgamo, Itália, a 16 de Março de 2020. O número de mortes provocadas pelo COVID-19, em Itália, ultrapassou hoje as registadas na China desde o início do ano, apesar de este país ter uma população 24 vezes superior à da Itália
Trabalhadores dos cemitérios e das agências funerárias, com máscaras protectoras, durante o funeral de uma pessoa morta devido ao coronavírus COVID-19, em Bérgamo, Itália, a 16 de Março de 2020. O número de mortes provocadas pelo COVID-19, em Itália, ultrapassou hoje as registadas na China desde o início do ano, apesar de este país ter uma população 24 vezes superior à da Itália CréditosFlavio Lo Scalzo / Reuters
AUnião Europeia desapareceu, tragada pelas incidências da pandemia do novo coronavírus. Habituada a criar crises humanitárias em casas alheias, não sabe agora como lidar com um drama sanitário interno e responde da mesma maneira que perante as vagas de refugiados de que é responsável: barrica-se e, cá dentro, é cada um por si. Muito federalista quando se trata de cumprir o catecismo neoliberal contra os cidadãos, a União Europeia eclipsa-se quando é necessário socorrê-los.
Fustigada pela crise entre as crises, a Itália pediu à Comissão Europeia a activação do Mecanismo de Protecção Civil para poder contar com a ajuda dos Estados membros no combate à epidemia. Nesta Europa da «solidariedade» nenhum país se mostrou disponível para responder. O único auxílio estrangeiro que o povo italiano recebe é o da China – através de pessoal de saúde, instrumentos e material clínico; e a região da Lombardia, neste quadro, decidiu pedir auxílio a Cuba, sobretudo devido ao êxito de um medicamento cubano contra os efeitos do novo coronavírus (COVID-19), como tem sido testemunhado nas regiões chinesas mais atingidas. Havana respondeu afirmativamente, da mesma maneira que acolheu um cruzeiro britânico com passageiros infectados e que ninguém queria receber.
A imagem que a União Europeia transmite aos cidadãos é a de um eclipse progressivo das suas instituições ao ritmo do avanço da pandemia. Estados fecham fronteiras mesmo sem informar os vizinhos (a excepção é a Península Ibérica), o Parlamento Europeu foi o primeiro a fugir de cena refugiando-se na quarentena, não há qualquer indício de esforços para potenciar, no âmbito dos 27, os recursos sanitários disponíveis para que as nações menos atingidas possam ajudar as mais afectadas pela tragédia. Tão prestimosa em cuidar do casino financeiro, a União Europeia é um fracasso cívico e solidário. Reina o salve-se quem puder. A pandemia do novo coronavírus, tal como nenhuma outra situação, expõe a União Europeia como uma entidade que não existe para servir as pessoas mas para servir-se delas em favor dos interesses de castas.

A «prontidão» da NATO

Porém, a crer na informação transmitida pelos canais oficiais da NATO e pelo comandante supremo aliado na Europa, o general norte-americano Tod Woulters, há um aspecto em que a União Europeia, como braço político da Aliança Atlântica, ainda funciona em bloco neste período: o da actividade militar transnacional.
Os dados das últimas horas divulgados por fontes atlantistas credenciadas explicam-nos que o novo coronavírus e as restrições postas em vigor para combatê-lo não impõem o cancelamento do essencial dos jogos de guerra em curso.
Nos termos do comunicado disponível no website dos exercícios Defender-Europe 20, a NATO tomou «uma série de medidas de precaução para reduzir a desnecessária disseminação da doença», que se reflectem na dimensão e âmbito das manobras. Essas medidas incluem o cancelamento de um conjunto de sub-exercícios, mas não das actividades guerreiras consideradas fulcrais.
«Continuaremos a preservar a prontidão das nossas forças enquanto maximizamos os esforços para promover as nossas alianças e parcerias», lê-se no texto. Trata-se, acrescenta, «de construir a prontidão estratégica para deslocar uma força credível de combate na Europa para apoiar a NATO e a estratégia de defesa dos Estados Unidos da América». Esses esforços determinaram «a capacidade do exército para coordenar movimentos em larga escala com aliados e parceiros».
Isto é o que nos diz a NATO no momento em que a União Europeia encerra as suas fronteiras externas, em que fecha muitas fronteiras internas, em que se declaram estados de emergência que – por muito que sejam acompanhados pelas mais piedosas declarações – limitarão drasticamente os direitos e liberdades dos cidadãos.
Como é que os jogos de guerra da NATO, mesmo «alterados em dimensão e âmbito», se encaixam na enxurrada de medidas restritivas impostas à generalidade dos cidadãos? Era importante que o governo de Portugal explicasse como é possível que isto continue a acontecer enquanto tudo o resto se suspende, tanto mais que o Ministério da Defesa já revelou a existência de militares infectados. Certamente terá elementos esclarecedores, uma vez que o país é membro da NATO e, segundo informa o comunicado da aliança, «há ainda muitos pormenores que estão a ser trabalhados e discutidos com os nossos aliados e parceiros». Partilhá-los com os cidadãos seria um gesto cívico em tempos nos quais os direitos cívicos se diluem em medidas que suscitam inegáveis reservas democráticas.

O que se seguirá?

A saída de cena da União Europeia em tempos de coronavírus, por muito que se diga que os isolamentos nacionais se processam em articulação com as instituições europeias, é temporária e estender-se-á apenas, muito provavelmente, pelo período da pandemia.
Depois disso a União renascerá no seu esplendor, pronta a tornar-se indispensável para lidar com a crise económica, financeira e social decorrente da crise sanitária.
Será a ocasião já não de socorrer os cidadãos mas de estabelecer mecanismos para que estes sejam os instrumentos da recuperação económica de acordo com os parâmetros habituais, isto é, em benefício dos grandes interesses privados, incluindo os financeiros.
Então, os países que não responderam às aflições italianas estarão prontos a unir-se na disseminação da austeridade, da limitação de direitos laborais elementares, do desemprego, da contenção salarial e do maior desprezo ainda pelos horários de trabalho, enfim da inesgotável ambição patronal pela arbitrariedade.
Sabemos como foi depois de 2008; por maioria de razão, porque o COVID-19 vai ter as costas muito largas, assim irá acontecer quando for debelada a pandemia.
Não se trata de uma antecipação de cenários, muito menos de fazer futurologia. É apenas uma reflexão de modo a que a generalidade das pessoas não pensem que o pior já passou quando o vírus for derrotado.
Existem comportamentos próprios de um passado recente e atitudes assumidas já nestes dias que fazem prever o pior sobre a exploração da crise económica, financeira e, sobretudo, social gerada pelo facto de o ataque do novo coronavírus ter detonado a nova crise do neoliberalismo – que já se adivinhava há longos meses. Percebendo agora o afã com que grupos e empresas privadas recorrem à suspensão de postos de trabalho, à tentação de fazer negócio tirando proveito de situações geradas pelo combate à pandemia, às reclamações de apoio estatal que já se fazem ouvir sem pudor, não será difícil prever a hecatombe que aí vem logo que seja declarado o fim do reinado do COVID-19.
Mais uma vez o Estado, isto é, os cidadãos, serão chamados a «salvar» os bancos, a financiar as empresas privadas sob chantagens como as do desemprego em massa ou do próprio encerramento.
Então ressurgirá, na sua plenitude, a União Europeia, para seguir os seus guiões habituais, retocados socialmente para pior por alegada culpa do COVID-19. Bruxelas terá os seus «semestres europeus» adaptados à nova situação, o Banco Central Europeu reinventará as «troikas» que considerar necessárias, o reforço da austeridade voltará a ser uma incontornável solução. Quantos dos trabalhadores que agora foram mandados «para casa» recuperarão plenamente os seus postos de trabalho? Quantos deles terão de sujeitar-se a restrições de direitos, incluindo salariais, para não perderem o emprego «por causa do coronavírus»? Quantos não serão obrigados à «revisão» dos seus vínculos laborais porque as experiências com teletrabalho têm vindo a revelar-se excelentes para o reforço de lucros e a mitigação de direitos sociais?
Essa será também a altura em que os Sistemas Nacionais de Saúde, que têm de fazer frente à pandemia depois de anos e anos de desinvestimento dos governos, continuarão a tentar sobreviver submetidos a restrições ainda maiores e ditadas, como sempre, pelas obscuras chantagens do défice.
Estamos num tempo em que, uma vez debelada a pandemia, nada voltará a ser como antes de detectado o novo coronavírus. Haverá um antes e um depois do COVID-19, continuando o sistema neoliberal a gerir a situação e manipulando agora uma nova crise que parece feita de encomenda.
E então a União Europeia, que não sabe como socorrer solidariamente os seus cidadãos, estará certamente unida para sacrificá-los no altar da necessária recuperação económica e, sobretudo, financeira. Contando, como sempre, com a sombra protectora da NATO, que para isso não se priva de trabalhar pela sua «prontidão» perante as «potenciais ameaças» à boa ordem, mesmo sob os ambientes carregados de ofensivas virais originadas sabe-se lá onde.

José Goulão; Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril

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