domingo, 22 de março de 2020

Como vamos ‘derrotar’ o vírus?

sol.sapo.pt 




Quando voltamos à escola? 
E podemos voltar a estar com os avós? 

São perguntas dos mais novos. Mas a inquietação é coletiva. 

Do receio da doença aos impactos sociais e económicos que se antecipam com a Europa a viver em estado de emergência perante a ameaça da pandemia. Foi declarada guerra ao coronavírus, mas como se derrotará o inimigo? 

A discussão tem aquecido o debate científico, entre as ideias de que é preciso tentar suprimir a transmissão ou abrandar ao máximo a epidemia e ‘aplanar a curva’ – isolando todos os doentes e casos suspeitos –, mas também criar imunidade populacional, ou seja, permitir que o vírus infecte a população, da forma o mais controlada possível e protegendo os mais vulneráveis, para conseguirmos ter defesas. 

E não é só no Reino Unido, onde Boris Johnson recuou nos últimos dias na estratégia desalinhada de deixar o vírus fazer o seu caminho, que teve oposição da comunidade científica e médica do país, por poder significar mais vítimas mortais e o colapso do NHS. 

As escolas em Inglaterra foram encerradas sem data para reabrir e foram proibidos eventos de massas. 
A questão mantém-se: pode ser mais prudente nesta fase evitar a exposição ao máximo, mas resolver o problema poderá passar por voltar a sair de casa.

Fechar o país

O primeiro-ministro holandês abordou esta semana o problema num discurso ao país, explicando por que motivo não avançam já para o confinamento total ou fecho de fronteiras, como aconteceu na China, ainda que também tenham fechado escolas, bares, medidas idênticas às seguidas nos últimos dias por vários países europeus, incluindo Portugal. 

Sublinhando a dificuldade do momento, Mark Rutte defendeu que é importante que o país continue a navegar seguindo a bússola do conhecimento científico. «A realidade é que o coronavírus está entre nós e vai permanecer entre nós nos próximos tempos», disse. «Não há uma saída fácil ou rápida para esta situação difícil. A realidade é que no futuro próximo uma grande parte da população holandesa vai ser infetada por este vírus».

Rutte explicou então os cenários e disse que a convicção dos peritos ouvidos é que se pode atrasar a transmissão do vírus e ao mesmo tempo construir imunidade de grupo de uma forma controlada. 
Quem tem a infeção habitualmente fica com alguma imunidade, como acontecia com o sarampo (o que hoje é garantido pela vacina, que permitiu pensar na erradicação da doença). 

«Quando maior for o grupo imune, menos provável é que o vírus afete idosos vulneráveis ou pessoas com mais doenças. Com a imunidade de grupo constrói-se como que uma parede protetora à volta destas pessoas. 

Este é o princípio, mas temos de perceber que pode levar meses ou mais a construir imunidade de grupo e durante este período temos de proteger estas pessoas», disse.

E é aqui que surgem os diferentes cenários, continuou, explicando que há um que parece ser o mais indicado. Tentar controlar ao máximo o vírus, mas permitir que se crie imunidade de grupo, protegendo os grupos de risco. «Neste cenário, a maior parte da população vai ter doença ligeira e garantimos que o sistema de saúde consegue gerir a situação», disse Rutte, justificando que o cenário de ‘parar o país’ não funcionará a prazo. 

«Esta abordagem rigorosa pode parecer atrativa à primeira vista, mas os peritos sublinham que não seriam dias ou  semanas. 

Neste cenário, teríamos de parar o país por um ano ou mais, com todas as consequências. E mesmo que fosse possível – deixar as pessoas só sair de casa com permissão durante um longo período – depois o vírus poderia ressurgir de imediato se as medidas fossem levantadas». 

Para já, nenhum país europeu impôs uma quarentena total, mas as medidas têm estado a escalar, com as saídas e deslocações reduzidas. 

Com ou sem recolher obrigatório, as ruas estão a ficar vazias e os contactos sociais restritos. 

Chegará? 

Por cá, a questão foi levantada publicamente pelo virologista Pedro Simas no programa Prós e Contras (RTP). Ao SOL, o investigador do Instituto de Medicina Molecular (IMM) admite que a pressão social e também a vulnerabilidade dos sistemas de saúde e falta de material de proteção são fatores que pesam nas decisões e que, nesta fase, e perante o risco para a população mais vulnerável e profissionais de saúde, a abordagem de restringir ao máximo os contactos para abrandar a doença faz todo o sentido. 

Simas defende, no entanto, que é preciso perceber as consequências e começar a planear o segundo momento de resposta à epidemia, sob pena de restrições mais distendidas no tempo serem ineficazes para resolver uma crise que se adivinha longa. 

Quão longa é uma incógnita: as previsões reveladas pelo Governo apontam o fim da curva epidémica para o final de maio, no melhor cenário, disse esta semana António Costa. Nos EUA, o cenário traçado, revelado esta semana pelo New YorkTimes, é que a crise da covid-19 possa durar 18 meses, com várias vagas e tipos de resposta – esta seria a primeira.

Erradicar  o vírus? Improvável

Simas admite que um cenário em que o vírus desaparece após esta primeira vaga é improvável – em pandemias da gripe houve mais de uma onda, às vezes no verão. O aumento da temperatura e a exposição a radiação ultravioleta diminui a sobrevivência dos vírus, e pode ajudar, mas a gripe e outros coronavírus continuam a circular ao longo de todo o ano, o que numa situação em que a maioria da população não tem defesas será sempre um risco. 

Além disso, a transmissão comunitária já está a acontecer em vários países, pelo que teria de ser suprimido em todos e haver fortes restrições à circulação para ser controlado apenas por esta via. «Pode fazer-se os lockdowns que se quiser que o vírus não é erradicado, temos de ter imunidade populacional ou ter uma vacina», afirma o investigador. 
«Não podemos dizer que é endémico, porque só quando está muitos anos na população tem essa definição, mas a probabilidade de erradicar o vírus da população no imediato é praticamente nula. Controlar sim, erradicar não». 

Como controlá-lo, então? 

Pedro Simas ressalva que, para uma pandemia, o cenário é relativamente bom: 95% das pessoas infetadas têm doença ligeira. As restantes têm quadros graves, com recuperações demoradas, o que estando-se numa fase de rápida propagação sem tratamento nem imunidade, aumenta o perigo para os grupos mais vulneráveis – idosos e pessoas já com doenças de base, com a taxa de letalidade acima dos 80 anos a superar os 10% na China mas também na Coreia.

A análise de Wuhan tem vindo a validar a eficácia da abordagem restritiva: uma equipa de investigadores da Faculdade de Higiene e Medicina Tropical de Londres estimou que a taxa de reprodução do vírus baixou de 2,2 para 1,5 uma semana depois de a cidade ser isolada e a população receber ordens para ficar em casa. 
Ou seja, cada doente passou a infetar pelo uma pessoa e ocasionalmente mais de uma, em vez de infetar duas ou mais. «Também se estima que se tivessem começado uma semana antes, tinham tido menos 67% de infetados. 

Mas é preciso ver o que aconteceu: na experiência chinesa, estiveram oito semanas de quarentena mas a medida avaliada como mais eficiente foi a deteção precoce dos casos e o isolamento. Isso é muito difícil de generalizar agora porque não há testes suficientes».
Também se estima agora que até à ordem de lockdown, a 23 de janeiro, 86% dos casos não terão sido detetados porque as pessoas não procuraram cuidados de saúde, tinham uma ligeira constipação ou não sentiam nada, o que terá levado à rápida expansão da epidemia, revelou esta semana um artigo publicado na Science. 

A OMS reforçou o apelo para serem testados todos os casos suspeitos a par de outras medidas. «Por haver casos assintomáticos e se calhar não haver capacidade de muitos testes pede-se às pessoas para ficar mais em casa. Compreende-se a situação de emergência e a pressão social, mas além da componente de ética, de pesar os impactos que isso terá em termos económicos e sociais, é preciso pensar que ao fazer isto podemos não resolver o problema e estamos a atrasar a imunidade de grupo».

Medidas excecionais


Pedro Simas reforça que toda esta crise se coloca sobretudo por se tratar de um coronavírus novo para o qual a população não tem imunidade – nem vacina, por agora – e não porque seja mais agressivo do que outros vírus que circulam entre humanos.

É isso que leva os países a tomarem medidas excecionais: o risco de se entupir os serviços de saúde e as consequências que isso pode ter. «É um vírus que causa síndrome respiratória aguda severa, os casos graves precisam de ventilação mecânica e não existem ventiladores em número suficiente, e isso também acontece quando temos por exemplo picos epidémicos de gripe A. 

A diferença no impacto é que nas epidemias de gripe a população tem imunidade, porque convive há anos com o vírus influenza, e porque existe uma vacina, disponibilizada aos grupos de risco».

Como seria então a segunda fase de resposta? 

Para Pedro Simas, é isso que deve começar a ser pensado, com o apoio da comunidade científica. 
«Os decisores têm de se rodear de uma equipa multidiscplinar, que olhe para os outros países, interprete os resultados científicos e aconselhe medidas. 

O que é dramático aqui é que os países mais ricos estão a fazer as coisas mais faseadas e os países pobres, que são os que mais precisam do trabalho, são os que têm de deixar primeiro de trabalhar», analisa Pedro Simas, reforçando o apelo. «Temos de rapidamente pensar um modelo de como vamos fazer para enfrentar a segunda vaga, porque no limite podemos estar períodos prolongados em estado de emergência e quando sairmos voltar ao mesmo». O vírus pode continuar a circular na comunidade sem ser notado até haver casos graves ou testes generalizados e a falta de defesas só se alteram quando houver uma vacina eficaz ou se for possível criar imunidade de grupo.

Vacina no outono?

Esta semana houve novidades na corrida à vacina: os EUA anunciaram que vão começar testes em voluntários saudáveis e, dias depois, a academia chinesa anunciou uma vacina eficaz e teve luz verde para ensaios clínicos. Já na Europa, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou 80 milhões de euros de financiamento a um laboratório alemão e disse acreditar que a vacina poderá chegar ao mercado no outono. Pedro Simas mostra cautela: 
«A única vacina que sabemos que está em fase de ensaios clínicos é a chinesa e pode demorar 12 a 14 meses e já com o processo a ser acelerado. 

E no limite pode não funcionar. Por isso, neste momento, é perigoso ficar à espera de uma vacina. 
Para as decisões que é preciso tomar no imediato, é irrelevante pensar numa vacina», defende.

Nem beijinhos, nem Páscoa

Já para haver imunidade de grupo, a estimativa dos investigadores é que seria necessário que o SARS-CoV2 infetasse 70% da população, tendo em conta a taxa de reprodução do vírus. Por exemplo, no sarampo, mais infeccioso – sem vacina ou imunidade de grupo, uma pessoa com sarampo infeta 12 a 18 – considera-se que existe proteção de grupo quando mais de 95% da população está vacinada. «É neste ponto que defendo que se deve pensar no próximo passo. 

O país sem produzir um mês vai pagar um preço muito caro, o que pode ser necessário, mas é muito importante perceber que o vírus não vai ser eliminado desta forma. Pode ganhar-se tempo para a resposta do serviço de saúde, mas é preciso pensar o resto e como se poderá chegar a este ponto de forma controlada sem vacina», defende.

Nesta perspetiva, um cenário poderia ser fasear um regresso gradual à normalidade, em que a população teria de manter os cuidados de distanciamento social para diminuir o risco de transmissão, mas os grupos de risco terão previsivelmente de manter-se mais tempo resguardados. 

«Até haver uma vacina estarão sempre num maior risco», resume o investigador do IMM, o que ajuda a antecipar que, mesmo levantadas medidas mais restritivas anunciadas esta semana, o contacto mais próximo com familiares mais velhos pode só acontecer mais tarde. E dificilmente será aconselhável reuniões de família na Páscoa, a questão que muitos colocam. 
Beijos e abraços também terão de ficar para depois. 

«Eu sendo saudável, tento não ser um propagador do vírus, não tenho sintomas, dou beijinhos à minha mulher e aos meus filhos, mas penso que até podermos a voltar a fazê-lo no geral vai demorar algum tempo. Há culturas diferentes, fiz a minha formação em Inglaterra e ninguém dá beijinhos, mas não sei se os portugueses se habituam».

E as escolas, poderão reabrir este ano? 
«Da mesma forma que se está a fazer um esforço na China para reabrir as escolas agora que passou a onda, terá de se fazer um esforço para reabrir as escolas cá. 
Não está demonstrado que as crianças sejam um vetor disseminador da doença e sabemos que têm doença ligeira, mas mesmo que sejam, espero que consigamos arranjar uma estratégia para proteger grupos de risco e ter as crianças a voltar à escola».

Tal como as oito semanas de quarentena na China prometem tornar-se um caso de estudo da saúde pública, agora é preciso seguir o regresso à normalidade e ver o que funciona, diz Pedro Simas. 

Na semana em que as aulas foram suspensas em muitos países por causa da pandemia, a China reabriu as primeiras escolas e os alunos regressaram ao ensino ‘offline’. Segundo a imprensa chinesa, com autocarros com circuitos adaptados para ir buscar as crianças a casa nos seus bairros e evitar juntar alunos de zonas diferentes, controlo de temperatura e uso de máscara, sessões de etiqueta respiratória e proibição de ajuntamentos e limpeza regular dos espaços comuns, mudanças que agora já não parecem assim tão distantes.

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