O que ninguém contará sobre Auschwitz - Os grandes media internacionais falam de Auschwitz à sua maneira: reescrevendo a história. E uma das formas de a reescrever é fazer silêncio sobre o papel do grande capital internacional na promoção e no financiamento do nazismo. E fazer silêncio sobre os que tiraram lucro dos crimes monstruosos do nazi-fascismo.
O que ninguém contará sobre Auschwitz
O que ninguém contará sobre Auschwitz
por Miguel Ángel Rodríguez Arias
Os grandes media internacionais falam de Auschwitz à sua maneira: reescrevendo a história. E uma das formas de a reescrever é fazer silêncio sobre o papel do grande capital internacional na promoção e no financiamento do nazismo. E fazer silêncio sobre os que tiraram lucro dos crimes monstruosos do nazi-fascismo.
Passam setenta anos sobre a libertação do campo da morte de Auschwitz, com toda a probabilidade o nome que evoca o mais próximo que o ser humano, em toda sua história, chegou a estar do mal absoluto. E já não é dizer pouco.Auschwitz, e os outros mais de 50 “campos da morte” disseminados por toda a Europa ocupada, evocados em uníssono apenas com essa menção; e sem contar os quase 1000 campos de concentração do Terceiro Reich, os mais de 1150 guetos e tudo o resto.
Declarado Património da Humanidade pela UNESCO, falar de Auschwitz continua sendo hoje demasiado difícil, demasiado insuficiente, demasiado assustador. Não há texto nem palavras suficientes para abarcar o que foi Auschwitz, e muito menos num breve artigo, é certo.
Contudo, é para mim demasiado inaceitável que mesmo no dia em que se recorda o 70º aniversário da libertação de Auschwitz tudo o que ali sucedeu seja permitido esquecer que Auschwitz foi o maior campo de trabalho forçado da Alemanha nazi.
E que Auschwitz foi também “IG Auschwitz”. Filial de IG Farben, o grande Cartel empresarial do momento, formado pelas empresas Bayer, HOECHST e BASF.
E não digo o grande Cartel empresarial “alemão”, porque isso não seria verdade, pelo menos até praticamente Dezembro de 1941 e o ataque a Pearl Harbor.
E não seria verdade porque, segundo o próprio relatório oficial da Secção de Investigação Financeira do Governo Militar de Ocupação, por altura de 1940, do total das 324.766 acções que compunham o Cartel IG Farben, unicamente 35.616 estavam nas mãos de pessoas com residência na Alemanha, enquanto quase o triplo, 86.671 acções, estavam nas mãos de investidores de nacionalidade estado-unidense, e quase cinco vezes mais, 166.100 acções, estavam nas mãos de cidadãos suíços.
Quer dizer que mais de 80% do capital social de IG Farben era financiado a partir de Wall Street e da Suíça, face a pouco mais de 10% de financiamento propiamente alemão.
E essa seria, precisamente, uma das razões determinantes para que os responsáveis empresariais de IG Farben (até 24 altos dirigentes da companhia) não tivessem sido processados nos Julgamentos principais de Nuremberga: a dificuldade em conseguir deixar fora da investigação penal outros cidadãos dos Estados Unidos, Reino Unido e outros países.
Porque os líderes nazis foram uns monstros e uns dementes, evidentemente que sim, mas algum dia acabará por se falar também da autêntica conspiração de Farben, Krupp e outras grandes empresas mundiais, supostamente “alemãs” que em nome de uma “vantagem” auto-referencial e à margem de qualquer sensatez e humanidade, os promoveram e financiaram sem limite, com mais de três milhões de marcos da época “para que as eleições de 1933 fossem as últimas eleições da República de Weimar” (von Schnitzler dixit) para poderem depois fazer à vontade “negócios” com o regime nacional-socialista aproveitando a “oportunidade de mercado” da invasão de quase toda a Europa bem como de “instalações de trabalho” como Auschwitz…
Porque, tal como assinalaria o promotor Taylor no seu “indictment” durante os Julgamentos posteriores a Nuremberga: “IG marchou com a Wehrmacht, concebeu, iniciou e preparou um detalhado plano para, apoiado por esta, se apropriar da indústria química da Áustria, Checoslováquia, Polonia, Noruega, França, Rússia e outros 18 países”.
E por isso tão pouco deveria surpreender que após a derrota do nazismo uma das Leis do Conselho de Controlo aliado fosse precisamente a número 9, de 20 de Setembro de 1945, especificamente destinada a dissolver o Cartel IG Farben e fundamentada, segundo as palavras do seu próprio preâmbulo, na necessidade de “impedir que IG Farben pudesse representar qualquer ameaça futura para os seus vizinhos ou para a paz mundial através da Alemanha”.
O que não quer dizer que fosse de esperar que, quando passam 70 anos sobre a libertação, surgisse algum tipo de comunicado ou pedido público de perdão pela “IG Auschwitz” por parte da Bayer, HOECHST ou BASF, empresas estas que, ao contrário da sua matriz Farben, continuam hoje a existir.
Considero que “IG Auschwitz” representa um motivo muito real de preocupação acerca da necessidade de rever os“limites e controlos” do poder corporativo no mundo actual, e sobre a actual insuficiência dos instrumentos de Direito penal internacional perante tudo isso. E que, neste dias de rememoração, é demasiado inaceitável, e arriscado para um futuro que ninguém deseja ver repetido, que nem sequer seja mencionada a fundamental responsabilidade assumida por estes e outros actores empresariais no imenso crime de Auschwitz.
*Advogado. Perito em Direito penal internacional.
Rebelión publicou este artigo com autorização do autor mediante uma licença de Creative Commons, respeitando a sua liberdade para o publicar em outras fontes.
Fonte: O Diário
O que ninguém contará sobre Auschwitz
por Miguel Ángel Rodríguez Arias
Os grandes media internacionais falam de Auschwitz à sua maneira: reescrevendo a história. E uma das formas de a reescrever é fazer silêncio sobre o papel do grande capital internacional na promoção e no financiamento do nazismo. E fazer silêncio sobre os que tiraram lucro dos crimes monstruosos do nazi-fascismo.
Passam setenta anos sobre a libertação do campo da morte de Auschwitz, com toda a probabilidade o nome que evoca o mais próximo que o ser humano, em toda sua história, chegou a estar do mal absoluto. E já não é dizer pouco.Auschwitz, e os outros mais de 50 “campos da morte” disseminados por toda a Europa ocupada, evocados em uníssono apenas com essa menção; e sem contar os quase 1000 campos de concentração do Terceiro Reich, os mais de 1150 guetos e tudo o resto.
Declarado Património da Humanidade pela UNESCO, falar de Auschwitz continua sendo hoje demasiado difícil, demasiado insuficiente, demasiado assustador. Não há texto nem palavras suficientes para abarcar o que foi Auschwitz, e muito menos num breve artigo, é certo.
Contudo, é para mim demasiado inaceitável que mesmo no dia em que se recorda o 70º aniversário da libertação de Auschwitz tudo o que ali sucedeu seja permitido esquecer que Auschwitz foi o maior campo de trabalho forçado da Alemanha nazi.
E que Auschwitz foi também “IG Auschwitz”. Filial de IG Farben, o grande Cartel empresarial do momento, formado pelas empresas Bayer, HOECHST e BASF.
E não digo o grande Cartel empresarial “alemão”, porque isso não seria verdade, pelo menos até praticamente Dezembro de 1941 e o ataque a Pearl Harbor.
E não seria verdade porque, segundo o próprio relatório oficial da Secção de Investigação Financeira do Governo Militar de Ocupação, por altura de 1940, do total das 324.766 acções que compunham o Cartel IG Farben, unicamente 35.616 estavam nas mãos de pessoas com residência na Alemanha, enquanto quase o triplo, 86.671 acções, estavam nas mãos de investidores de nacionalidade estado-unidense, e quase cinco vezes mais, 166.100 acções, estavam nas mãos de cidadãos suíços.
Quer dizer que mais de 80% do capital social de IG Farben era financiado a partir de Wall Street e da Suíça, face a pouco mais de 10% de financiamento propiamente alemão.
E essa seria, precisamente, uma das razões determinantes para que os responsáveis empresariais de IG Farben (até 24 altos dirigentes da companhia) não tivessem sido processados nos Julgamentos principais de Nuremberga: a dificuldade em conseguir deixar fora da investigação penal outros cidadãos dos Estados Unidos, Reino Unido e outros países.
Porque os líderes nazis foram uns monstros e uns dementes, evidentemente que sim, mas algum dia acabará por se falar também da autêntica conspiração de Farben, Krupp e outras grandes empresas mundiais, supostamente “alemãs” que em nome de uma “vantagem” auto-referencial e à margem de qualquer sensatez e humanidade, os promoveram e financiaram sem limite, com mais de três milhões de marcos da época “para que as eleições de 1933 fossem as últimas eleições da República de Weimar” (von Schnitzler dixit) para poderem depois fazer à vontade “negócios” com o regime nacional-socialista aproveitando a “oportunidade de mercado” da invasão de quase toda a Europa bem como de “instalações de trabalho” como Auschwitz…
Porque, tal como assinalaria o promotor Taylor no seu “indictment” durante os Julgamentos posteriores a Nuremberga: “IG marchou com a Wehrmacht, concebeu, iniciou e preparou um detalhado plano para, apoiado por esta, se apropriar da indústria química da Áustria, Checoslováquia, Polonia, Noruega, França, Rússia e outros 18 países”.
E por isso tão pouco deveria surpreender que após a derrota do nazismo uma das Leis do Conselho de Controlo aliado fosse precisamente a número 9, de 20 de Setembro de 1945, especificamente destinada a dissolver o Cartel IG Farben e fundamentada, segundo as palavras do seu próprio preâmbulo, na necessidade de “impedir que IG Farben pudesse representar qualquer ameaça futura para os seus vizinhos ou para a paz mundial através da Alemanha”.
O que não quer dizer que fosse de esperar que, quando passam 70 anos sobre a libertação, surgisse algum tipo de comunicado ou pedido público de perdão pela “IG Auschwitz” por parte da Bayer, HOECHST ou BASF, empresas estas que, ao contrário da sua matriz Farben, continuam hoje a existir.
Considero que “IG Auschwitz” representa um motivo muito real de preocupação acerca da necessidade de rever os“limites e controlos” do poder corporativo no mundo actual, e sobre a actual insuficiência dos instrumentos de Direito penal internacional perante tudo isso. E que, neste dias de rememoração, é demasiado inaceitável, e arriscado para um futuro que ninguém deseja ver repetido, que nem sequer seja mencionada a fundamental responsabilidade assumida por estes e outros actores empresariais no imenso crime de Auschwitz.
*Advogado. Perito em Direito penal internacional.
Rebelión publicou este artigo com autorização do autor mediante uma licença de Creative Commons, respeitando a sua liberdade para o publicar em outras fontes.
Fonte: O Diário
27 de Janeiro de 1945 - libertação de Auschwitz - A ARD escolheu Esther Bejarano, uma prisioneira que tocava na orquestra de Auschwitz, para assinalar este dia. Uma mulher com uma vitalidade impressionante, que conta que em Auschwitz decidiu sobreviver para se vingar. E vinga-se bem, diz ela: vai às escolas contar o que viu e viveu.
27 de Janeiro de 1945 - libertação de Auschwitz
VÍDEOS
A ARD escolheu Esther Bejarano, uma prisioneira que tocava na orquestra de Auschwitz, para assinalar este dia. Uma mulher com uma vitalidade impressionante, que conta que em Auschwitz decidiu sobreviver para se vingar. E vinga-se bem, diz ela: vai às escolas contar o que viu e viveu.
Traduzo (rapidamente) partes de uma entrevista que deu à ARD. As fotografias são do mesmo site.
Esther Bejarano era uma jovem mulher quando foi deportada para Auschwitz. Um lugar na orquestra feminina salvou-lhe a vida. Em conversa com o tagesschau.de conta o que sofreu no campo e como viveu a libertação.
- O que significa o 27 de Janeiro para si?
- É o dia da libertação de Auschwitz, e do princípio do fim do fascismo de Hitler. Mas nesse dia em Auschwitz não havia muitos prisioneiros. Apenas os que não podiam andar, ou estavam demasiado doentes para sair nas marchas da morte. Os que estavam nas marchas não foram libertados nesse dia. Foi um grande dia, mas não foi ainda a libertação completa.
- Onde estava a 27 de Janeiro de 1945?
- Já não estava em Auschwitz. Os nazis tinham seleccionado os chamados „Mestiços" – e eu tinha uma avó cristã. Por isso, depois de sete meses em Auschwitz, fui enviada para o campo de Ravensbrück com 70 mulheres que também tinham pais ou avós “arianos”. Era um campo de concentração para mulheres horroroso, mas não era um campo de extermínio. Fui libertada em Maio de 1945. Estávamos numa marcha da morte, em Mecklenburg, eu e sete mulheres que também tinham vindo de Auschwitz para Ravensbrück. Não sabíamos para onde nos levavam, e ouvimos um SS dizer a outro que já não podiam disparar. Foi aí que decidimos abandonar a marcha. Uma após a outra fugimos para a floresta. Vagueámos pela região e acabámos por chegar a uma quinta. Deixaram-nos dormir num palheiro. No dia seguinte o lavrador veio ter connosco e disse „Se forem para a esquerda encontram os americanos, se forem para a direita encontram os russos.” Mas não tivemos de tomar nenhuma decisão, porque nesse momento apareceram dois tanques americanos. Mostrámos aos soldados os números tatuados no braço. Os soldados içaram-nos para os tanques e levaram-nos para Lübz, onde nos convidaram para ir a um restaurante. Eu e uma amiga minha sabíamos inglês e contámos o que tínhamos vivido – inclusivamente sobre a orquestra de raparigas de Auschwitz. Daí a pouco entrou um soldado com um acordeão e disse que era altura de cantar. A seguir ouvimos uma grande barulheira na rua: soldados do Exército Vermelho tinham entrado na aldeia e anunciavam que o Hitler estava morto e a guerra tinha terminado. Os soldados americanos e russos festejaram juntos e queimaram uma grande fotografia do Hitler, enquanto eu tocava acordeão. Foi fantástico.
- Antes da libertação, das marchas da morte e de Ravensbrück, esteve em Auschwitz. Havia lá algo parecido com uma normalidade quotidiana?
- Naturalmente, havia um quotidiano, e era horroroso. Trabalho – no princípio tinha de carregar pedras. Das sete da manhã às sete da noite. As pedras eram imensamente pesadas e eu era uma miúda pequena e frágil. Tinha mesmo de sair dali – e tive sorte. Uma noite um dos prisioneiros veio em busca de mulheres que tocassem algum instrumento. Disse logo que sabia tocar piano. Mas não havia pianos Auschwitz. Ele disse que havia um acordeão, e eu devia tocar nele "Du hast Glück bei den Frauen Bel Ami". Nunca tinha tocado um acordeão, mas menti e disse que já não tocava há muito e precisava de alguns minutos para me habituar de novo. Fui para um canto da barraca experimentar. A mão direita não tinha problema, porque é como no piano. Mas o acompanhamento na mão esquerda – não fazia a menor ideia. Um dos botões estava marcado, era o dó maior. A partir daí, descobri os outros. Finalmente, toquei a música que queriam, e aceitaram-me na orquestra. Caso contrário, teria sido o meu fim.
- Quando é que os SS de Auschwitz deixavam tocar uma orquestra?
- Punham-nos ao portão a tocar quando as colunas de trabalho saíam de manhã e regressavam à noite. Mais tarde, ocorreu-lhes que também devíamos tocar quando chegavam os transportes da Europa, em cais diferentes. Nós sabíamos que estas pessoas iam directamente para as câmaras de gás. Elas acenavam-nos. Provavelmente pensavam que um lugar onde há música não pode ser muito mau.
- 70 anos mais tarde, a música ainda é muito importante para si. Faz parte da banda Microphone Mafia. O que há de especial nesta banda de rap?
- Na Microphone Mafia encontram-se três gerações e três religiões num palco. Entre outros temos um muçulmano, um católico – e eu e o meu filho, que somos judeus. Queremos ser um exemplo para todos os que pensam que as pessoas que têm raízes diferentes não podem viver em harmonia umas com as outras. Nós entendemo-nos lindamente.
conversa2.blogspot.pt
VÍDEOS
A ARD escolheu Esther Bejarano, uma prisioneira que tocava na orquestra de Auschwitz, para assinalar este dia. Uma mulher com uma vitalidade impressionante, que conta que em Auschwitz decidiu sobreviver para se vingar. E vinga-se bem, diz ela: vai às escolas contar o que viu e viveu.
Traduzo (rapidamente) partes de uma entrevista que deu à ARD. As fotografias são do mesmo site.
Esther Bejarano era uma jovem mulher quando foi deportada para Auschwitz. Um lugar na orquestra feminina salvou-lhe a vida. Em conversa com o tagesschau.de conta o que sofreu no campo e como viveu a libertação.
- O que significa o 27 de Janeiro para si?
- É o dia da libertação de Auschwitz, e do princípio do fim do fascismo de Hitler. Mas nesse dia em Auschwitz não havia muitos prisioneiros. Apenas os que não podiam andar, ou estavam demasiado doentes para sair nas marchas da morte. Os que estavam nas marchas não foram libertados nesse dia. Foi um grande dia, mas não foi ainda a libertação completa.
- Onde estava a 27 de Janeiro de 1945?
- Já não estava em Auschwitz. Os nazis tinham seleccionado os chamados „Mestiços" – e eu tinha uma avó cristã. Por isso, depois de sete meses em Auschwitz, fui enviada para o campo de Ravensbrück com 70 mulheres que também tinham pais ou avós “arianos”. Era um campo de concentração para mulheres horroroso, mas não era um campo de extermínio. Fui libertada em Maio de 1945. Estávamos numa marcha da morte, em Mecklenburg, eu e sete mulheres que também tinham vindo de Auschwitz para Ravensbrück. Não sabíamos para onde nos levavam, e ouvimos um SS dizer a outro que já não podiam disparar. Foi aí que decidimos abandonar a marcha. Uma após a outra fugimos para a floresta. Vagueámos pela região e acabámos por chegar a uma quinta. Deixaram-nos dormir num palheiro. No dia seguinte o lavrador veio ter connosco e disse „Se forem para a esquerda encontram os americanos, se forem para a direita encontram os russos.” Mas não tivemos de tomar nenhuma decisão, porque nesse momento apareceram dois tanques americanos. Mostrámos aos soldados os números tatuados no braço. Os soldados içaram-nos para os tanques e levaram-nos para Lübz, onde nos convidaram para ir a um restaurante. Eu e uma amiga minha sabíamos inglês e contámos o que tínhamos vivido – inclusivamente sobre a orquestra de raparigas de Auschwitz. Daí a pouco entrou um soldado com um acordeão e disse que era altura de cantar. A seguir ouvimos uma grande barulheira na rua: soldados do Exército Vermelho tinham entrado na aldeia e anunciavam que o Hitler estava morto e a guerra tinha terminado. Os soldados americanos e russos festejaram juntos e queimaram uma grande fotografia do Hitler, enquanto eu tocava acordeão. Foi fantástico.
- Antes da libertação, das marchas da morte e de Ravensbrück, esteve em Auschwitz. Havia lá algo parecido com uma normalidade quotidiana?
- Naturalmente, havia um quotidiano, e era horroroso. Trabalho – no princípio tinha de carregar pedras. Das sete da manhã às sete da noite. As pedras eram imensamente pesadas e eu era uma miúda pequena e frágil. Tinha mesmo de sair dali – e tive sorte. Uma noite um dos prisioneiros veio em busca de mulheres que tocassem algum instrumento. Disse logo que sabia tocar piano. Mas não havia pianos Auschwitz. Ele disse que havia um acordeão, e eu devia tocar nele "Du hast Glück bei den Frauen Bel Ami". Nunca tinha tocado um acordeão, mas menti e disse que já não tocava há muito e precisava de alguns minutos para me habituar de novo. Fui para um canto da barraca experimentar. A mão direita não tinha problema, porque é como no piano. Mas o acompanhamento na mão esquerda – não fazia a menor ideia. Um dos botões estava marcado, era o dó maior. A partir daí, descobri os outros. Finalmente, toquei a música que queriam, e aceitaram-me na orquestra. Caso contrário, teria sido o meu fim.
- Quando é que os SS de Auschwitz deixavam tocar uma orquestra?
- Punham-nos ao portão a tocar quando as colunas de trabalho saíam de manhã e regressavam à noite. Mais tarde, ocorreu-lhes que também devíamos tocar quando chegavam os transportes da Europa, em cais diferentes. Nós sabíamos que estas pessoas iam directamente para as câmaras de gás. Elas acenavam-nos. Provavelmente pensavam que um lugar onde há música não pode ser muito mau.
- 70 anos mais tarde, a música ainda é muito importante para si. Faz parte da banda Microphone Mafia. O que há de especial nesta banda de rap?
- Na Microphone Mafia encontram-se três gerações e três religiões num palco. Entre outros temos um muçulmano, um católico – e eu e o meu filho, que somos judeus. Queremos ser um exemplo para todos os que pensam que as pessoas que têm raízes diferentes não podem viver em harmonia umas com as outras. Nós entendemo-nos lindamente.
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Ofício de matar
A 27 de janeiro de 1945, as tropas soviéticas entravam no campo de concentração de Auschwitz - foi há precisamente 70 anos. Para assinalar um dia histórico, o Expresso disponibiliza online um texto publicado originalmente a 28 de janeiro de 1995, onde alguns dos sobreviventes evocam o drama e se reflete sobre um episódio julgado impensável.
Para entrar em Oswiecim (nome polaco de Auschwitz) pela estrada que vem do norte é preciso atravessar o caminho-de-ferro.
Há meio século, os comboios ainda passavam nestes carris. Os vagões de mercado rias chegavam atulhados de gente de diferentes países da Europa. Saíam depois repletos de roupa, relógios e cabelo. Aos seus proprietários nunca foi permitido abandonar esta cidade do sul da Polónia. As cinzas de um milhão e meio de pessoas, na grande maioria judeus, foram despejadas num rio vizinho. Toda uma indústria de matar, idealizada e organizada minuciosamente pelo regime nazi de Adolf Hitler.
Há 50 anos, no dia 27 de Janeiro de 1945, as tropas soviéticas entraram na cidade. Os soldados do general Petrenko viram uma imagem aterradora. Cerca de sete mil prisioneiros, famélicos e enregelados, saíram ao seu encontro no meio de montículos de cadáveres de companheiros, mortos por assassinato ou de fome nos últimos dias de cativeiro. Ainda poucas horas antes os homens das SS haviam queimado vivos várias dezenas de prisioneiros ao incendiar um dos barracões. "Ouvimos um rebentamento de uma granada ao lado da porta principal do campo. Saímos e deparámos com uns soldados com as armas em posição de disparar. Ao verem-nos, baixaram as armas", recorda Anna, agora com 65 anos. "Saudámo-los em russo. Responderam-nos: "Agora sois livres'".
Tudo começara em 1940.
As autoridades alemãs encomendaram a tarefa de organizar o campo a Rudolf Hoess, um oficial das SS que fora antes comandante do campo de concentração de Sachsenchausen. O campo tinha de ser organizado porque já não havia lugar nos cárceres da Silésia (sul da Polónia). Lá deve riam ser alojados os presos de guerra, os presos políticos e, principalmente, os representantes das nações condenadas a desaparecer: os judeus e os ciganos. Te riam de trabalhar na indústria militar da zona e também nas explorações agrícolas. O primeiro carregamento de presos polacos chegou a Auschwitz a 14 de Junho de 1940.
Para Hoess a tarefa foi complicada. "Não era fácil. Um complexo de edifícios já existentes, em bom estado mas totalmente abandonados e cheios de insectos, teriam de ser convertidos em campo transitório para dez mil prisioneiros", recordava nas suas memórias, nos meses que precederam a sua execução em 1947. "É muito mais fácil criar um campo novo do que reformar um conjunto de edifícios e infraestruturas já existentes." Hoess estava, contudo, esperançado: "Sabia que em Auschwitz se poderia fazer algo de útil graças ao trabalho incansável e tenaz de todos. Desde o comandante até ao preso mais humilde." Foi a pensar nisso que mandou colocar no portão principal de Auschwitz a famosa inscrição: "Arbeit macht frei" (o trabalho liberta).
Extermínio em massa Mal foi terminado o campo de Auschwitz, concebido inicialmente como "ligeiro", logo se transformou num campo de extermínio. Ainda durante a fase de construção, entre Março de 1941 e finais de Janeiro de 1942, desapareceram do campo sem deixar rasto 18 mil prisioneiros. Não era em vão que o subcomandante do campo, Karl Fritz, costumava dizer aos recém-chegados: "Isto não é um sanatório, mas sim um campo de concentração alemão; daqui não se sai senão pela chaminé." De facto, os presos morriam de fome devido à tortura e ao trabalho extenuante, sendo os corpos cremados.
"A luta pela sobrevivência no campo era implacável", escreveu nas suas memórias Czeslaw Marcinko, um dos primeiros presos a chegar a Auschwitz (número 39), em 1940. "0 essencial era encontrar comida, evitar o trabalho mais duro e furtarmo-nos às ordens". Tudo isso, porém, podia terminar num espancamento. Marcinko, por exemplo, foi condenado a 40 chicotadas por ter aceite um pedaço de pão que lhe havia sido oferecido por um habitante de Oswiecim quando trabalhava fora do campo. "Fui agarrado por dois agentes das SS. Tive que contar os golpes em voz alta. Quando perdi o conhecimento, levaram -me para o `bloco' [edifício onde viviam os presos]. "Não reconheci a minha culpa. Sabia que nesse caso me teriam condenado à morte." Ao fim de meio ano, o peso de Marcinko desceu de 70 para 43 quilos.
"Não quero descrever todas aquelas brutalidades", confessa outro preso, Jozef Baja, que foi transportado para Auschwitz em 1943. "Os golpes eram tão fortes que os chicotes se partiam em cima das cabeças e dos ombros; o trabalho era insuportável; vi gente afogada em latrinas."
Contudo, estes dois prisioneiros sobreviveram a Auschwitz e, mais tarde, a outros campos para onde foram evacuados. Eram úteis porque eram capazes de trabalhai e não pertenciam às raças condenadas ao desaparecimento.
Em finais de 1940, foi tomada a decisão de ampliar o campo para se proceder ao extermínio maciço de prisioneiros. "Logo desde o início empenhei-me totalmente neste trabalho, direi mesmo que estava possesso com a ideia de cumprir a ordem", recorda Hoess. "As dificuldades que se apresentavam ainda me empolgavam mais. Não queria render-me, a minha ambição não mo permitia", dizia Hoess nas suas memórias sobre a primeira etapa da construção de Birkenau. A tarefa fora definida pelo Reichsführer SS (comandante-chefe das SS), Heinrich Himmler - a construção de um campo para 100 mil prisioneiros de guerra; a ampliação do campo já existente para conseguir espaço para 30 mil pessoas. "Eram então números absolutamente desconhecidos", assegurava Hoess, "um campo para dez mil pessoas já era na altura considerado muito grande".
A três quilómetros de Auschwitz, num campo "modesto", com apenas 20 edifícios onde se amontoavam cerca de dez mil prisioneiros, construiu-se o gigantesco campo de Birkenau, também conhecido como Auschwitz II. Esta autêntica fábrica de matar começou a funcionar em Março de 1942. Ocupava uma superfície de 175 hectares. Era composto por 300 barracões e quatro enormes fornos crematórios, integrados nas câmaras de gás.
Dezenas de barracões foram conservados até aos nossos dias, tendo todos sido construídos pelos próprios presos. É notória a minúcia com que foram planificados. Enquanto em Auschwitz se havia procedido a uma adaptação das instalações de um quartel de cavalaria a campo de concentração, em Birkenau foi tudo construído de raiz. Parte dos edifícios foi feita em ladrilhos, mas a grande maioria é de madeira. Dos que foram incendiados restam apenas as chaminés. Neste mês de Janeiro, tal como há 50 anos, está muito frio e há neve. Sobre o fundo branco eleva-se uma floresta de chaminés.
Mas as chaminés mais sinistras não ficaram de pé. Quando se entra no campo pelo famoso "portão da morte" e se seguem com os olhos as linhas do comboio, avistam-se ao fundo, a cerca de um quilómetro, umas ruínas. São os escombros dos fornos crematórios. O letreiro colocado pe rto do Forno Crematório II informa: capacidade - duas mil pessoas, roupeiro, câmara de gás, elevador eléctrico para os fornos, sala de cortar o cabelo, sala dos fornos (para extracção dos dentes de ouro), forno para a incineração de documentos e outros artigos pessoais desnecessários.
Câmaras de gás Foi justamente para aqui que foram conduzidos comboios cheios de judeus de toda a Europa. Foi justamente aqui que se aplicou, em escala maciça, o método de extermínio de seres humanos com gás.
O Ziclon B, uma variedade do ácido prússico, foi utilizado em Auschwitz pela primeira vez em Setembro de 1941. Para primeiras vítimas foram escolhidos prisioneiros de guerra soviéticos. A "operação" foi levada a cabo num depósito de cadáveres previamente esvaziado, em cujo tecto se haviam aberto uns buracos. A aplicação do gás, antes utilizado como insecticida no campo, foi considerada "uma grande invenção " na opinião do comandante Hoess, que não sabia como cumprir com eficácia a ordem de extermínio maciço.
"Descobrimos finalmente como aquele gás era necessário e como devia ser utilizado", escreveu Hoess nas memórias, "sempre senti um autêntico horror ao pensar nos fuzilamentos em massa. Agora estava tranquilo pois não haveria carnificinas e se pouparia sofrimento às vítimas. Recordava bem o que me haviam contado sobre os fuzilamentos e as cenas terríveis quando os feridos tentavam fugir e era preciso voltar a disparar contra mulheres e crianças".
A partir de 1942, ano em que Hitler tomou a decisão de "solucionar de forma definitiva a questão judia", ou seja de matar 1 milhões judeus europeus, a operação ensaiada em Setembro de 1941 foi repetida diariamente. A selecção fazia-se por vezes dentro dos comboios: alguns prisioneiros eram destinados aos trabalhos forçados ou, por exemplo, a experiências médicas, outros mandados directamente para as câmaras de gás.
Depois de se despirem, iam para a câmara de gás dotada de duches e tubagens, o que lhes dava a impressão de se tratar de um banho. Primeiro deixavam-se entrar as mães com os filhos, depois os homens. Quase sempre a operação desenrolava-se com tranquilidade, porque os presos do Sondercommando (grupos de presos obrigados a trabalhar nos fornos crematórios como ajudantes) conseguiam convencê-los de que se tratava de uma desinfecção.
Segundo Rudolf Hoess, era a maneira mais eficaz e mais humana de solucionar a questão judia. "Os que estavam perto dos orifícios por onde se introduzia o gás morriam de imediato. Era quase um terço. Os demais começavam a gritar, amontoavam-se, arquejavam. Contudo, rapidamente o grito transformava-se num gemido. Passados 20 minutos, quando muito, já ninguém se mexia. No entanto, por vezes levantavam-se problemas: uma mulher aproximou-se de mim e, apontando os seus quatro filhos que estavam de mãos dadas, perguntou-me: "`Como vais matá-los?'. Vi outra mulher que, no último momento, tentou empurrar o filho pequeno para fora da câmara. Não conseguiu".
A roupa e outros objectos de utilidade deixados pelos condenados às câmaras de gás eram enviados ao III Reich. Grupos especiais de presos estavam encarregados de revistar o vestuário e os corpos para encontrar dinheiro, ouro e jóias. Os relógios eram enviados para o campo de Sachsenchausen, onde eram seleccionados e reparados se valesse a pena. Depois serviam de oferta para soldados alemães e funcionários nazis.
Hoje em dia, no cemitério de Auschwitz, podem contemplar-se milhares de óculos, dezenas de milhares de escovas, pentes e pincéis. Uma sala inteira está cheia de pratos e travessas. Noutra amontoam-se milhares de sapatos. Uma pequena parte do que deve ter restado de centenas de milhares de homens, mulheres e crianças, gaseados e queimados nos fornos crematórios de Auschwitz-Birkenau.
Estatísticas macabras O número de vítimas continua a ser objecto de fortes polémicas. Os poucos documentos que ficaram depois da evacuação do campo pelos alemães foram confiscados pelas tropas soviéticas. Uma comissão de investigação, dirigida pelo general soviético Dimitri Kudriavtsev, baseou-se nestes documentos e nas declarações dos presos, assim como na capacidade teórica das câmaras de gás e dos fomos crematórios. Esta última calcula-se em mais de cinco milhões de pessoas.
Contudo, os cientistas tiveram que tomar em consideração as avarias e as pausas tecnológicas necessárias para o funcionamento correcto dos fomos.
Durante muitos anos considerou-se como definitivamente certo um número superior a 4 milhões, onde se incluíam dois milhões e meio de judeus. O ex-comandante de Auschwitz, Rudolf Hoess, executado em 1947 ao lado de um dos fomos crematórios, afirmou durante a investigação que o número total de presos não havia ultrapassado os dois milhões e meio.
Segundo as últimas investigações realizadas pelo cientista polaco Franciszek Piper, o número de prisioneiros registados oficialmente no campo cifrou-se em 400 mil. Contudo, a maioria dos judeus trazidos para Auschwitz para serem gaseados imediatamente nunca foram registados. O seu número eleva-se a 900 mil.
Segundo Piper, o número total de prisioneiros que "passaram por Auschwitz" eleva-se a 1 milhão e 300 mil. Desses, 1 milhão e 100 mil morreram ou foram assassinados. Em todo o caso, asseguram os investigadores, o número de vítimas mortais do conjunto Auschwitz- Birkenau não ultrapassou um milhão e meio.
Quando se entra em Oswiecim pela estrada do norte, começa-se por se ver anúncios de oficinas, fábricas e lavandarias. Apenas ao lado da estação ferroviária se encontra a primeira tabuleta que indica o caminho para o "Museu de Auschwitz". Não há, contudo, qualquer problema para se chegar lá. Qualquer pessoa, inclusive crianças pequenas, sabe onde fica "o museu". Não falam do campo. "Não é possível recordar constantemente ", afirmam.
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