segunda-feira, 5 de novembro de 2018

O CANIL DOS CÃES ZAROLHOS



O CANIL DOS CÃES ZAROLHOS

para o António Cabrita

 

 

desgraçadamente ladram mas não mordem

buscam nas urnas os donos
e estes passando a mão pelo pêlo
roubam-lhes a ração da boca 
logo à boca das urnas 
sempre fiéis e de beiços arreganhados
basta um açoite no traseiro 
para ficarem mais obedientes e servis
os cães afiam os dentes
temendo as garras e os bicos dos abutres 
numa ilusão - rasante às ciladas 
da vida - gretada de palavras febris
uns ousam ladrar mais acirrados
correndo o risco de serem encarcerados 
enquanto outros saltam a cerca 
antes da manhã derramelar as hienas 
e há os que se atiram contra o arame
farpado
             esfarrapando-se em massa 
num mimetismo desesperante
subalimentados ladram docinho
roçando as pernas dos donos 
para ganhar um osso 
na praia dos trompetes em chamas 
à beira-mar da noite espezinhada 
pelo terror das hienas
enquanto anónimos suicidam-se 
no sussurro da infâmia 
defronte aos que mastigam bolores 
para sobreviverem
a caridade vai derramando asfixiante
misturando-se a um crude solidário 
                                                        legal
e é legal ladrarem um poucochinho 
manifestando a ira de açaime sindical
cães velhos corroídos de crostas infecciosas
e respiração barbitúrica 
rosnam aos espelhos do requiem 
sabendo serem um enfarte de trabalhos 
aos tratadores do canil
os veterinários vão ministrando remédios
contra-indicados corroborando 
na deterioração lenta das carnes 
embebidas em minutos sem sangue 
cozinhando a ração para ser distribuída 
aos da lista de espera que teimosamente restam
entre restos de lixo e lixos da fé
colocam açaimes controlando a informação
e uma coleira de mecânicas palavras escolhidas 
repetidas até à exaustão
a imprensa tornou-se parasita e
os jornalistas uns piolhos de salão 
alimentando-se de noticias tosquiadas
                                                              ocultam 
a incómoda realidade para as hienas
os comentadores do regime viraram coveiros

e dentro das valas vão-se babando
as carraças que gravitam ao seu redor
vendendo-se para se sentarem à mesa 
dum ficcionado banquete do real 
com pedigree romano/nazi
tem o canil uma nova dona que vem 
descaracterizando os sinais únicos 
do âmago duma pátria
 
aos peixes saquearam as espinhas
aos frutos os caroços
e um temporal não se levantou
caminhantes dos atalhos moribundos
lançam ao passar pelos dias de esgoto 
sementes bolorentas sabendo de antemão
ser o seu gesto inútil 
                                  ser e nada brotar
rosnam trovões sob a morte das searas

lembranças do purgatório ateiam fogo
às papoilas 
                   ao redor jovens cachorros 
arregaçam os caninos aos escaravelhos 
que esperneiam nos subúrbios do planeta 
                                                                    em agonia 
entrançando de nuances uma existência aziaga
nocturnos eram os rostos
diurnos os sonhos improváveis 
improvável era encontrar os teus dizeres
guardados numa gaveta de nuvens
prenhas de anjinhos com açaimes  
percorrendo lentamente o vazio 
onde ao centro um fedelho agrafa 
penas de toutinegra nas asas do vento 
a raspar a saudade 
                                apunhalando os rostos 
no enterro do pensar porque 
                                               pensar é um veneno
e os retratos ardem nos lugares alertando 
ser o amor um tumor de pó e cinza 
perseguem estrada fora os da paz
                                                        uma antiguidade
mão de fogo outra de água espelhando o vulcão
cuspindo cadáveres enforcados 
depositando a lava para os olhos 
dos tempos que hão-de vir 
                                            cegando de pavor 
pela estrada paralela caminham os da guerra
seguindo por agora no contrário dos outros 
reacendendo um sangue no peito
ao fundo a encruzilhada

assim chegámos assim chegaremos
à roda a um fim de mínimos de tudo 
onde o todo é um nada 
aos cães bastaria
alimentarem-se bem na infância
daí para a frente o cagado seria o alimento
continuado num circulo rotineiro 
até a morte aparecer para se alimentar da luz
e cuspir a carcaça
o mundo
               mal cheiroso 
confluindo merdas de vendáveis ilusões
como não é meu designo governar
fazer curriculum perpetuar a espécie 
nem mesmo proferir oratórias 
com estandartes bordados de lambidelas 
a um qualquer regime 
uso por hora as letras 
                                    para dinamitar 
o covil das hienas eleitas 
com um cante ao desafio
é escusado irem ver a barca bela 
pois já não se faz ao mar  
a treta nunca foi nela
e os escravos é que iam a remar
santa Merkel é o piloto 
o FMI o general  
que nojento trapo levam 
o fado de Portugal 
as palavras sempre pertenceram à morte

um dia um cachorro das últimas ninhadas
ladrará bem alto pela libertação do canil 
ferrando os dentes nas contorções das hienas 
até o veneno fritar-lhes o cérebro no parapeito 
da janela defronte à estrada muralhada 
de cadáveres em vinagre e nadas
nesse tempo de nova rotina doméstica
eu já não andarei por estas bandas
nesse tempo os homens voltarão
por algum tempo de novo a ler 
nos remoinhos do saber mais além
enquanto lá longe vou minguando 
em busca dos meus olhos laminados
por gente vil que conseguiu tornar-me
na dor que lhes convém
cego seguirei para voltar ao sofrimento da terra
onde todos os trajectos de 
                                           todos 
os lugares vão sempre dar à morte
por hora
por hora volto 
                       ao aconchego dos braços 
o pouco que me resta

 

Jorge Aguiar Oliveira
Inédito. Cacilhas, Dezembro de 2012


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